Médicos do Ceará formam coletivo para "defender vidas, o SUS e a ética médica"
O POVO conversou com uma das organizadoras do grupo. Para Liduina Rocha, a pandemia é um trágico e amargo exemplo do quanto o Sistema Único de Saúde (SUS) é necessário no PaísNascido da necessidade de se pensar criticamente o "fazer médico", o Coletivo Rebento, formado por médicos e médicas cearenses que estão na linha de frente no combate à Covid-19, sabe muito bem para o que veio: "A defesa do SUS, da ética médica e de todas as vidas".
A missão está exposta até no nome "Rebento", que vem de ARREBENTAR mesmo - em caixa alta como a obstetra e integrante Liduina Rocha fez questão de exclamar. Palavra foi pensada a partir de uma música do artista Aldir Blac, uma das mais de trinta mil vítimas do novo coronavírus.
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"Acreditar na existência dourada do sol, mesmo que em plena boca nos bata o açoite contínuo da noite, ARREBENTAR a corrente que envolve o amanhã, despertar as espadas, varrer as esfinges das encruzilhadas", diz um trecho da canção O Cavaleiro e os Moinhos.
Para o Coletivo, Aldir Blanc é uma das grandes inspirações. "Ele nos ensina que é necessário termos o desejo de mudar a realidade, transformá-la, mesmo que isso a arrebente. Aldir Blac, como nós era médico, acreditava no SUS, na arte, e na humanidade", explica a médica. A escolha do nome é uma homenagem e um alinhamento.
O Coletivo não surgiu para fins clínicos ou assistenciais, mas sim para debater os processos e caminhos da Medicina nesse contexto de pandemia. "Pensar criticamente o fazer-se médico não só na sua dimensão técnica, mas na suas relações com a ciência, a política, a promoção de saúde", avisa Liduina.
Por isso o grupo vê como necessário o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil e sua defesa. Para a médica, a pandemia é um "trágico e amargo exemplo do quanto é necessário o SUS". "Sem ele, apesar das suas deficiências, o quadro atual seria muito pior", considera Rocha. Ela reconhece o sucateamento do sistema e o que classifica como "perene tentativa da sua desvalorização". Mas não deixa de reforçar que o SUS é um dos "melhores, maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo".
Grupo também surge forte nesse momento em que a ciência sofre ataques. Os profissionais de saúde, pesquisadores e outros técnicos têm falado sobre isso. É o caso de profissionais da FioCruz, que em abril sofreram ataques nas redes sociais após divulgação de resultados preliminares sobre uso da cloroquina em pacientes graves com a Covid-19.
Em meio às incertezas, o crescimento de casos de Covid no Brasil e a disputa pela cloroquina, o País lida com a demissão de dois ministros da Saúde. Nelson Teich foi o último que saiu.
"Essa é nossa linha de frente: um grupo que busca contestar e expor ações que fujam às evidências ou as descontextualizem", reitera Liduina Rocha. De acordo com a obstetra, as evidências científicas precisam ser situadas no contexto sócio-histórico e político para gerar políticas públicas efetivas. Crescimento de desigualdade social também preocupa o Coletivo Rebento.
O perfil no Instagram do coletivo já conta com diversas publicações sobre saúde e outros temas. A ideia é se posicionar enquanto profissionais que enfrentam o dia a dia de combate ao coronavírus.
Foram os médicos do Coletivo Rebento, por exemplo, que encaminharam um abaixo-assinado para a Assembleia Legislativa (AL-CE) pedindo a cassação do mandato do deputado estadual André Fernandes (PSL), após Fernandes ter afirmado que o secretário da Saúde do Estado, Dr. Cabeto, altera atestados de óbitos.
O documento contou com a assinatura de cerca de 100 profissionais e acusa o parlamentar de divulgar falsas informações.
"Por esse ataque inaceitável ao Dr. Cabeto, com amplas e perigosas consequências sobre a segurança e a saúde da população, em pleno enfrentamento à pandemia do novo coronavírus, é imperioso e urgente que o Sindicato dos Médicos do Ceará tome providências, inclusive recorrendo ao Judiciário, contra o deputado André Fernandes. É comprovado, através de pesquisas de opinião pública, de amplo conhecimento, o devastador e nocivo efeito da disseminação de "fake news" e de falsas versões sobre a atual pandemia, como as de que se trataria de uma "gripezinha", a de que seria uma doença perigosa apenas para idosos, a de que não se deve abrir mão do trabalho presencial. Tudo isso repercutiu nos diminuindo os índices de isolamento social e levando a um rápido aumento das curvas de contágio e de óbitos por Covid-19. Um crime contra o povo e contra o País!", diz trecho da nota do coletivo, divulgada à época (maio).
Além disso, o grupo também se articula para construção de conteúdos, por exemplo. Objetivo é ficar atento às demandas que exigem posicionamento da categoria e seu exercício. Hoje, 250 médicas e médicos cearenses estão alinhados com o Rebento, garante coletivo.
Ao O POVO, a obstetra Liduina Rocha também ressaltou que o projeto de desmonte do SUS não é recente, mas vem se fortalecendo nos últimos anos, em sua opinião. Para o grupo, é necessário que profissionais de saúde assumam uma posição nesses tempos de pandemia: "Ou se está em defesa do SUS ou dos grupos que lucram com as desigualdades. Não existe meio termo. Para nós do Coletivo Rebento defender o SUS é uma tarefa antes de tudo humanitária", concluiu.
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