Pandemia: medo e sensação de despreparo são os sentimentos mais comuns entre profissionais de saúde

Na região Nordeste, 90,6% dos profissionais de saúde declararam sentir medo de contrair Covid-19; no Brasil, mais da metade conhece algum companheiro infectado ou com suspeita

11:56 | Mai. 26, 2020

Por: Catalina Leite
Caso avance no Senado e seja sancionado pelo presidente, projeto prevê indenização para família de profissionais que morrerem ou ficarem incapacitados de trabalhar (foto: FABIO LIMA)

 

Médicos, enfermeiros, agentes comunitários de saúde e outros profissionais da área envolvidos na pandemia de Covid-19 encaram diariamente os impactos da doença no Brasil. Sem muitas informações sobre o vírus, sem Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) e sem suporte governamental, os profissionais afirmam que se sentem despreparados para lidar com a crise e com medo de se infectar.

É o que indica pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) realizada com 1.456 profissionais da saúde pública, de todos os níveis de atenção e regiões, entre os dias 15 de abril e 1º de maio de 2020. Deles, apenas 14,29% dos entrevistados se sentem preparados para lidar com a crise da Covid-19. No Nordeste, a taxa cai para 8%.

Ainda, 88,7% confessam sentir medo de contrair a doença no Brasil. As regiões Norte e Nordeste registram as maiores proporções, com 92,3% e 90,6%, respectivamente. Nesse sentido, é importante destacar que 55,1% dos profissionais brasileiros declararam que conhecem algum companheiro infectado ou com suspeita de Covid-19.

“É como se a gente estivesse jogando um monte de profissional no olho do furacão, desarmado, e falando ‘sejam heróis’”, avalia Gabriela Lotta em coletiva de imprensa promovida pela Agência Bori. Ela é professora da Escola de Administração de Empresa de São Paulo (EAESP) da FGV e coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB), responsável pela pesquisa.

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Causa e efeito

De acordo com o estudo, a ausência de treinamentos ou diretrizes para atuar na pandemia e a escassez de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) são os principais influenciadores para o receio dos profissionais de saúde.

O cenário se agrava principalmente nas regiões Norte e Nordeste, por registrarem os piores cenários da pandemia. Conforme dados do Ministério da Saúde (MS), atualizados às 19h25min dessa segunda-feira, 25, o Norte tem a maior taxa de mortalidade no País (25,4%). Já a região nordestina está em terceiro, com 12,3%, atrás apenas do Sudeste (12,5%).

No Nordeste, por exemplo, 78,9% dos respondentes afirmaram que não receberam EPIs. A distribuição parece ser desigual: médicos foram os que mais relataram receber maior quantidade de EPIs adequados (65,28%), enquanto agentes comunitários de saúde são os que menos recebem (19,65%). Desde março, O POVO noticia denúncias de falta ou má distribuição dos equipamentos. 

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Outra questão fundamental no enfrentamento à crise diz respeito ao treinamento e formação. Somente 21,9% dos profissionais afirmaram ter participado de treinamentos para lidar com o coronavírus ou que receberam diretrizes sobre como atuar. No Nordeste, os índices são de 12,5% e no Norte de 13,8%.

“Se a gente for olhar que soluções a gente precisaria nesse momento, elas mostram que [o problema] é muito mais descaso governamental que um problema estrutural”, comenta a coordenadora Gabriela Lotta. As ações envolveriam distribuir com urgência, frequência e qualidades EPIs para todos os profissionais atuando na linha de frente, das faxineiras aos médicos.

Os pesquisadores também consideram essencial a produção de conteúdos informativos e formativos sobre o coronavírus, além de construção de políticas de suporte emocional e psicológico para os profissionais da ponta. Como, por exemplo, disponibilizando psicólogo para fazerem acompanhamento destes profissionais.

Relatos: técnicos de enfermagem e o apego pelo paciente

Apesar de tudo, os dados não conseguem retratar as experiências dos profissionais atuando na pandemia. A técnica de enfermagem Rubia de Almeida, 50, trabalha no Hospital São José e confessa que cogitou parar de trabalhar quando soube que teria que estar na linha de frente da crise de Covid-19. “Passei uma semana sem pisar no hospital, quase morri de medo”, lembra.

“Mas quando eu cheguei lá [no hospital], eu vi que não tinha como fugir daquilo ali. Como eu ia fugir? É minha profissão, a missão que Deus deu pra eu fazer. Um monte de gente nas enfermarias, totalmente isolado, sem falar com as famílias… E eu vou ser covarde? Mas muitos [outros profissionais] desistiram. O que está em primeiro lugar é o medo”, diz.

O apego pelos pacientes é o que mais afeta o psicológico da técnica. “A gente chega, coloca os EPIs, vai na enfermaria e já chama pelo nome”, comenta. E enquanto muitos sobrevivem e viram motivo de comemoração nos hospitais, outros muitos só pioram. “Você pega um carinho por aquele paciente, como se você fosse uma pessoa da sua família, e aí você vai em um plantão ele está num cateter de O2. Quando você volta, já está na máscara de respiratório, depois na UTI. Outro dia você pergunta ‘cadê Fulano?’ e falam ‘Fulano veio a óbito…’ Esse é o dia a dia. Teve um plantão à noite que eu vi passando nove corpos… É muito pesado pra gente.”

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Apesar de ter recebido orientações do hospital já nos primeiros casos confirmados da doença no Brasil, a rotina de Rubia a fez marcar um acompanhamento psicológico para lidar com a situação. Os dias em que ela precisa fazer humanização dos corpos (quando eles são ensacados) são os piores. “Eu geralmente deixo [os problemas] no trabalho, mas com essa pandemia eu não tenho conseguido. Eu tenho trazido tudo pros meus sonhos e acabo perdendo o sono.”

Relatos: internos de Medicina na linha de frente

O POVO também conversou com uma interna de Medicina atuando em Manaus (AM), capital do estado que apresenta a maior e mais assustadora taxa de mortalidade do País. No Amazonas, 43% dos casos confirmados de Covid-19 morrem, segundo o MS.

A ainda estudante de Medicina, que preferiu não se identificar, a interna precisou substituir médicos que foram afastados por confirmação ou suspeita do novo coronavírus. “É desesperador. Porque eles não são só médicos. Eles são o pai de alguém, o amigo de alguém, o marido de alguém. No caso, eles eram meus preceptores. E dói, machuca muito, a incerteza ou a ideia de que eles não vão sobreviver ou que vão ter qualidade de vida reduzida”, relata.

Além da questão emocional, pesa também o afastamento das experiências dos médicos. “Medicina não é receita de bolo. Medicina é experiência mesmo. E vendo essas pessoas se afastarem, a gente entra em desespero. É menos uma cabeça pensante, é menos um profissional de qualidade, é menos um ser humano que tinha uma contribuição extremamente importante no momento”, comenta.

Ao substituir os orientadores, a rotina da interna se transformou em constantes momentos de tensão, medo e desespero. De repente, ela que não se afetava tão fortemente com mortes, passou a ficar “totalmente abalada” pelo volume de óbitos. Enquanto ela costumava ver, em uma semana, três a quatro mortes por diversas causas, só de Covid-19 o volume é de dez a 12 por dia. “Causa uma frustração muito grande você ver a pessoa morrendo e não saber o que fazer.”

O medo de se infectar cresce a cada profissional de saúde afastado. “Dá medo. Eu conheço médicos que infelizmente faleceram. Conheço médicos que ficaram em situação grave, e médicos que pegaram a forma mais branda da doença e mesmo assim não têm as capacidades respiratórias restauradas e ficam receosos de voltar.” Ela menciona outros três profissionais, de uma só equipe, mortos pela Covid-19. “A palavra é desespero, não tem nem como descrever com outra sensação.”

Com informações da Agência Bori.