Médicos do Ceará denunciam escassez de equipamentos de proteção e temem pela segurança durante atendimento
Desabastecimento de equipamentos de proteção individuais e desinformação da sociedade são fatores que colocam em risco a saúde dos médicos
12:36 | Mar. 24, 2020
Em um posto de saúde de uma cidade a cerca de 176 km de Fortaleza, ele é o único médico fixo. Os outros 14 profissionais de saúde do quadro municipal trabalham em diferentes unidades, o que faz com que os horários de plantão sejam pouco flexíveis. Em tempos normais, o sistema pode até funcionar, mas quando o assunto é uma pandemia, o cenário é outro. Principalmente, quando o único médico do posto, que preferiu não se identificar, está com suspeita de coronavírus.
A insegurança em relação à saúde do médico é consequência da escassez de equipamentos de proteção individuais (EPI), desde os mais complexos até as máscaras N95. De acordo com nota do Sindicato dos Médicos Cearenses (Sindmedce), são em média 20 denúncias diárias sobre a falta de EPIs e de orientações claras sobre a atuação dos médicos no Ceará.
“Nós, enquanto profissionais de saúde, temos potencial risco de sermos vetores. Eu trabalho no hospital com contato direto com cerca de 150 pessoas em 12 horas. Então, são 150 pessoas que, se eu estiver doente, eu potencialmente vou passar”, preocupa-se o médico.
Por estar apresentando sintomas como tosse seca e febre, ele está isolado e aguarda os resultados do teste para coronavírus. Enquanto isso, o posto de saúde no qual trabalha encontra formas de atender os pacientes com um integrante a menos. Além da angústia de não poder atuar como desejaria, o médico ainda enfrenta o medo de ter transmitido a Covid-19 para os familiares, com quem teve contato recentemente.
Outros municípios do interior do Ceará que registraram denúncias, segundo o Sindmedce, são Itu, Itapipoca, Campos Sales, Sobral, Canindé, Barbalha, Cascavel, Catunda e Eusébio.
Outro médico, atuante na cidade de Amontada, também teme pela segurança dos pacientes e dos familiares de profissionais de saúde. De acordo com ele, os médicos são cobrados pelas gestões e entidades de setorização profissional a serem “linha de frente no combate ao vírus”, ainda que sem EPIs.
“O ministro da Saúde recentemente divulgou que primeiro a linha de frente será dos mais jovens, depois dos mais velhos. Perceba que nessa fala já está implícita a perda de recurso humano. E que a falta dos EPIs certamente vai ser uma das grandes causas disso”, comenta. O profissional menciona que muitos médicos tentam adquirir os materiais por conta própria, mas se deparam com estoques zerados.
EQUIPAMENTOS DE PROTEÇÃO INDIVIDUAL
A máscara N95 é apenas uma pequena parte de toda a vestimenta caracterizada como EPI. Utilizada principalmente para intubar pacientes com Síndrome Respiratória Aguda Grave (Srag), a roupa “de astronauta” é essencial para proteger os profissionais de partículas aerossóis que podem ser produzidas ao abrir a traquéia do paciente durante o procedimento de intubação.
Aerossóis são aquelas partículas tão finas que ficam suspensas no ar e, por isso, são as principais transmissoras do Sars-Cov-2. Para a segurança dos médicos, o EPI deve ser composto por duas máscaras, uma delas a N95, luvas, óculos de proteção, avental impermeabilizante, sapatos descartáveis ou esterilizáveis e um capacete parecido com uma viseira transparente.
Após a intubação de um paciente, todo o EPI deve ser descartado ou esterilizado. “Tudo isso é para um paciente. Imagina isso para 500 pessoas. A gente não tem material para tudo isso, e isso gera uma complicação muito grande. As pessoas que precisam de suporte ventilatório são as que vão superlotar os hospitais”, analisa o médico.
Ele continua: “Se a gente não tem material, das duas uma: ou a gente vai se infectar, eu vou intubar um paciente e sair da linha de frente porque estou infectado; ou eu vou me recusar. Isso, para mim, é uma coisa inconcebível. Eu ter que pensar em recusar intubar a pessoa porque eu não tenho material adequado. Porque eu sei que, se eu for intubar, eu vou pegar. Com 100% de certeza.”
“Vemos nos vídeos da Itália, por exemplo, profissionais altamente paramentados e mesmo assim indo a óbito”, completa o médico de Amontada. “Imagina aqui, um País de proporção continental, com uma população que não está seguindo as orientações como deveria, que lida com sucateamento do SUS e hospitais privados limitados com leitos já saturados em alguns casos e ainda com profissionais expostos à linha de frente sem os recursos necessários para enfrentar o vírus.”
Na última quarta, 18 de março, o Sindmedce afirmou, em nota, ter enviado às secretarias estadual e municipal de Saúde, além do Ministério Público do Estado (MPCE), um documento pedindo medidas urgentes para “garantir a proteção de médicos, demais profissionais que atuam nas unidades de saúde e pacientes”.
No documento, o sindicato pede a garantia de fornecimento de EPIs, treinamento “adequado e extensivo” quanto à correta utilização e descarte dos equipamentos, a salvaguarda de profissionais de saúde que compõem grupos de risco, garantia à imunização contra o influenza e outras demandas.
DESINFORMAÇÃO TAMBÉM AMEAÇA OS PROFISSIONAIS DE SAÚDE
Outro fator que preocupa o médico é a desinformação da população. “A gente sofre com a desinformação da população. Apesar de a gente ter as mídias e os meios de comunicação, eles preferem acreditar no WhatsApp”, comenta.
Segundo ele, a sociedade segue contrariando as medidas de isolamento social. Outro médico, atuante em Amontada, descreve que muitas pessoas estão ignorando a quarentena e “achando que são férias”.
Além disso, o desabastecimento de máscaras e álcool em gel em farmácias e lojas de equipamentos médicos também se dá pela falta de informação do público. Com o primeiro surto de Sars-Cov-2, ainda fora do Brasil, muitas pessoas fizeram estoques de álcool em gel e máscaras em casa.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), no entanto, recomenda que apenas pessoas que apresentem sintomas e profissionais de saúde utilizem máscaras de proteção. A máscara é, em geral, ineficiente contra a Covid-19 e não é produzida em larga escala por muitos países, o que favorece o desabastecimento.