Por que especialistas contestam polêmica técnica que 'ressuscitou' lobo extinto há mais de 10 mil anos
Agência BBC

Por que especialistas contestam polêmica técnica que 'ressuscitou' lobo extinto há mais de 10 mil anos

A empresa americana Colossal Biosciences anunciou que conseguiu gerar três lobos-terríveis, uma espécie que desapareceu das Américas há milhares de anos. Mas como eles fizeram isso?
Um lobo branco anda pela neve com um pedaço de pau na boca
Colossal Biosciences
Os três filhotes de lobo foram chamados de Rômulo, Remo e Khaleesi

Um lobo branco magnífico, branco como a neve, estampa a capa da revista Time, acompanhado de uma manchete anunciando que a espécie "voltou" da extinção.

O lobo-terrível (Aenocyon dirus) ficou mais famoso ao aparecer na série de ficção Game of Thrones, mas ela existiu de fato, há mais de 10 mil anos, quando vagou pelas Américas.

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A empresa por trás da notícia, a americana Colossal Biosciences, anunciou na segunda-feira (7/4) ser responsável pelo que chamou de "primeiros animais desextintos do mundo".

Num vídeo postado no X (o antigo Twitter), eles mostram os uivos de dois filhotes que supostamente são de lobo-terrível (Aenocyon dirus), uma espécie de pelagem branca que habitou as Américas, mas está extinta há mais de 10 mil anos.

A companhia explicou que os animais foram criados a partir de ferramentas de edição genética.

Além de lobos, o grupo também faz pesquisas para tentar desextinguir o mamute-lanoso (Mammuthus primigenius), o dodô (Raphus cucullatus) e o lobo-da-tasmânia (Thylacinus cynocephalus).

"Esse momento representa não apenas um marco para nós como empresa, mas um avanço para a ciência, a conservação e a humanidade", comemorou a Colossal Biosciences nas redes sociais.

Mas embora os três lobos jovens — Rômulo, Remo e Khaleesi — representem um avanço tecnológico impressionante, especialistas independentes dizem que eles não seriam realmente lobos-terríveis.

Cientistas apontaram diferenças biológicas importantes entre o lobo da capa da Time e o lobo-terrível que vagava e caçava durante a última era glacial.

Entre eles, está zoólogo Philip Seddon, da Universidade de Otago, na Nova Zelândia, para que estes animais seriam, na verdade, "lobos-cinzentos [Canis lupus], geneticamente modificados".

Dois filhotes de lobo, com um mês de idade, deitados em um cobertor
Colossal Biosciences
Dois dos filhotes de lobo com um mês de idade

O que foi anunciado agora?

Em uma série de vídeos publicados pela Colossal Biosciences nas redes sociais, cientistas que fizeram parte do projeto explicaram em detalhes o passo-a-passo da iniciativa.

De acordo com seu relato, o primeiro passo foi coletar amostras de DNA do lobo-terrível.

Para isso, eles extraíram o material genético — que guarda as informações sobre as características de um ser vivo e as instruções para o organismo funcionar — de duas fontes: um dente de 13 mil anos encontrado em Ohio, nos Estados Unidos, e um pedaço de crânio de 72 mil anos escavado em Idaho, também nos Estados Unidos.

Em seguida, o lobo-terrível teve seus genes sequenciados. Os pesquisadores puderam então analisar essas informações genéticas e buscar qual espécie viva ainda preserva algum grau de parentesco com o animal extinto.

Eles chegaram, então, ao lobo-cinzento que vive em grande parte do Hemisfério Norte, em especial em regiões mais frias, como o Canadá e a Rússia.

Neste processo, eles entenderam quais genes eram iguais ou diferentes entre as duas espécies de lobo — e quais desses trechos de DNA eram responsáveis por determinar características específicas, como tamanho, peso, cor da pelagem, formato das orelhas etc.

A Colossal desenvolveu então técnicas menos invasivas para coletar células progenitoras endoteliais (a camada que reveste o interior dos vasos sanguíneos) do lobo-cinzento.

Essas células foram usadas como a base para o trabalho de modificar os genes.

Por meio de técnicas avançadas como o Crispr, os cientistas fizeram 20 edições em 14 genes, para que eles ficassem de acordo com o encontrado no DNA do lobo-terrível (e não mais do lobo-cinzento).

Com isso, seria possível obter algumas das características do lobo-terrível: pelo branco, maior porte, ombros abertos, cabeça mais larga, mais músculos nas pernas e vocalizações típicas da espécie, marcadas por uivos e choramingos.

Mas o trabalho não terminou aí: com a edição dos genes finalizada, os especialistas transferiram o núcleo dessa célula (local onde fica guardado todo o DNA) para um óvulo — cujo próprio núcleo havia sido retirado previamente.

Esse óvulo, por sua vez, foi cultivado para se tornar um embrião — que foi implantado no útero de uma cadela doméstica.

A cadela teve uma gestação normal e, ao final do período, nasceram os supostos filhotes de lobo-terrível.

Os dois primeiros vieram ao mundo em 1° de outubro de 2024 e foram batizados de Rômulo e Remo — uma alusão ao mito dos irmãos gêmeos amamentados por uma loba que fundaram Roma.

O terceiro, uma fêmea, nasceu em janeiro deste ano e ganhou o nome de Khaleesi, uma homenagem a Daenerys Targaryen, personagem de Game of Thrones.

Rômulo, Remo e Khaleesi são mantidos em uma grande reserva privada nos Estados Unidos cuja localização não foi divulgada, para proteger os animais.

Não há previsão de que eles sejam soltos na natureza ou cruzem para produzir uma nova geração.

Lobo cinzento
Getty Images
Células do lobo-cinzento foram usadas no projeto

Por que 'desextinção' está em xeque

Mas o anúncio da empresa causou um amplo debate se o que ela fez de fato foi uma "desextinção".

O paleogeneticista Nic Rawlence, também da Universidade de Otago, argumenta que o DNA antigo do lobo pré-histórico extraído de restos fossilizados seria muito degradado e danificado para ser copiado ou clonado biologicamente.

"DNA antigo é como se você colocasse DNA fresco em um forno a 500 graus", diz Rawlence.

"Ele sai fragmentado, como cacos e poeira. Você pode reconstruí-lo, mas não é bom o suficiente para fazer qualquer outra coisa com ele."

Em vez disso, acrescenta Rawlence, a equipe de desextinção empregou uma nova tecnologia de biologia sintética, usando o DNA antigo para identificar segmentos-chave de código que eles poderiam editar no DNA de um animal vivo hoje, um lobo cinzento no caso.

"Então, o que a Colossal produziu é um lobo-cinzento, mas ele tem algumas características semelhantes às do lobo pré-histórico, como um crânio maior e pelo branco", disse o Rawlence. "É um híbrido."

Beth Shapiro, da Colossal Biosciences, diz que a empresa fez uma desextinção ao descrever isso como a recriação de animais com as mesmas características.

Em entrevista à revista New Scientist, Shapiro detalhou que as duas espécies usadas no projeto — o lobo-terrível e o lobo-cinzento — dividem 99,5% do DNA.

"Um lobo-cinzento é o parente vivo mais próximo de um lobo-terrível — eles são geneticamente muito semelhantes", disse a cientista.

Embora esse percentual pareça elevado, os 0,05% restantes representa uma parcela significativa em termos genéticos: o lobo-cinzento possui 2,4 bilhões de pares de bases nitrogenadas (as "peças" que compõem cada um dos genes).

Ou seja: o 0,05% de DNA que separa lobo-cinzento e lobo-terrível ainda representa uma diferença de mais de um milhão de pares de bases nitrogenadas entre as espécies.

De acordo com Rawlence, os lobos terríveis se separaram evolutivamente dos lobos cinzentos em algum momento há 2,5 milhões a 6 milhões.

"Eles estão em um gênero completamente diferente dos lobos cinzentos", diz Rawlence.

"A Colossal comparou os genomas do lobo terrível e do lobo cinzento, e de cerca de 19 mil genes, eles determinaram que 20 mudanças em 14 genes deram a eles um lobo-terrível."

Mas certamente o animal extinto possui muitas outras diferenças no DNA que não foram contempladas na "nova versão" da espécie feita pelos cientistas da Colossal — e modificaram somente algumas características do lobo-cinzento (que deram a Rômulo, Remo e Khaleesi o pelo branco e o porte maior).

Para a NewScientist, Shapiro defendeu que "conceitos de espécie são sistemas de classificação humana".

"Estamos usando o conceito de espécie morfológica [determinadas por características e semelhanças] e dizendo que, se eles se parecem com este animal [o lobo-terrível extinto], então eles são esse animal", disse a cientista.

Técnica pode combater extinção em massa?

Os filhotes da Colossal certamente se parecem com a visão que muitas pessoas têm de um lobo terrível, e a história atraiu atenção global.

Então por que a distinção científica de que isso foi ou não uma extinção é importante?

"Porque a extinção ainda é para sempre. Se não tivermos extinção, como aprenderemos com nossos erros?", questiona Rawlence.

"A mensagem agora é que podemos destruir o meio ambiente e que os animais podem ser extintos, mas podemos trazê-los de volta?"

A Colossal argumenta, em seu anúncio, que residiria justamente aí o potencial deste tipo de iniciativa.

De acordo com a empresa, essa pode ser uma ferramenta para lidar com a extinção em massa de espécies que acontece neste exato momento — e que está relacionado às mudanças climáticas e à ação humana.

O Centro para Diversidade Biológica calcula que 30% da diversidade genética do planeta será perdida até 2050 por causa desse sumiço generalizado de diferentes formas de vida. Para a empresa americana, a edição genética é uma maneira de reverter isso.

Em uma entrevista à revista Time, funcionários da Colossal disseram que usar essas ferramentas é um "imperativo moral" e "uma forma dos humanos, que deixaram tantas espécies à beira da extinção, dar uma retribuição à natureza".

"Se nós queremos um futuro numeroso do ponto de vista biológico e cheio de pessoas, precisamos dar a nós mesmos a oportunidade de ver o que nossos grandes cérebros podem fazer para reverter algumas das coisas ruins que fizemos com o mundo", afirmou a cientista Beth Shapiro.

Segundo esse ponto de vista, é possível usar a edição genética para proteger algumas espécies e torná-las mais resistentes a alguns fatores, como a falta de água ou o excesso de calor.

A empresa também pontua que grandes predadores — como foi o caso do lobo-terrível há milhares de anos — são primordiais para o equilíbrio de ecossistemas.

De acordo com esse raciocínio, eles controlam as populações de outros animais e permitem um melhor balanço e uma dinâmica mais ajustada entre diferentes espécies que circulam por um mesmo local.

No entanto, não está claro como essa reintrodução de espécies extintas há milhares de anos aconteceria na prática e quais seriam os efeitos disso sobre o meio ambiente.

Até porque muitas delas, como é o caso de lobos ou mamutes, vivem em bandos numerosos e precisam de um vasto território cheio de recursos para sobreviver.

*Com reportagem de André Biernath, da BBC News Brasil, e Victoria Gill, da BBC News.

 

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