A homenagem de 'cidade-símbolo' da direita a prefeito morto pela ditadura militar
Higino Pio foi o primeiro prefeito eleito de Balneário Camboriú, no litoral norte de Santa Catarina.

No dia 19 de fevereiro de 1969, uma quarta-feira de cinzas, Julio Cesar Pio estava na prefeitura de Balneário Camboriú quando um carro do tipo Veraneio encostou na porta do edifício.
Dele, saíram homens que levaram seu pai, Higino João Pio, e outros funcionários. Eram agentes da repressão da ditadura militar.
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Não apresentaram mandado judicial ou deram maiores explicações sobre o motivo das prisões. Foi a última vez que Julio viu seu pai com vida.
Higino Pio foi o primeiro prefeito eleito de Balneário Camboriú, no litoral norte de Santa Catarina.
A cidade se emancipara de Camboriú poucos anos antes, em 1964. Higino integrava o então Partido Social Democrático (PSD).
Era um político progressista e amigo do presidente deposto João Goulart, mas seu histórico mostrava que estava longe de ser um comunista ou de se envolver com qualquer grupo de esquerda que pregasse a luta armada.
Ainda assim, foi detido pelos militares sob o pretexto de uma investigação sobre corrupção.
Higino foi encontrado morto na Escola de Aprendizes de Marinheiro, em Florianópolis, no dia 3 de março. Estava enforcado por um arame preso a um registro de água.
O laudo pericial divulgado quatro dias depois atestou que ele cometera suicídio. Novas investigações feitas em 2014 comprovaram que Higino Pio foi assassinado.


Morto pelo Estado
Agora, 56 anos depois, o ex-prefeito tem uma nova certidão de óbito que retifica a causa da sua morte. Foi corrigida para "morto pelo Estado brasileiro". E a cidade que virou símbolo da direita no Brasil prestará homenagem a um morto pela ditadura militar.
"Foi um acontecimento trágico para a família. Então, é um reconhecimento [a mudança no atestado de óbito], algo muito bom. Inclusive, a prefeitura vai trazer o corpo dele para Balneário Camboriú. Para o cemitério que foi ele quem fundou", diz Julio Cesar Pio, que tinha 13 anos de idade quando perdeu o pai.
Ele conta que Higino foi enterrado em Itajaí, com o caixão lacrado, sem que sua família fosse sequer consultada. "Ninguém podia chegar perto [do caixão]. Estava cheio de 'milico' [militar] armado."
Julio caminhava de volta para casa, depois de jogar bola com amigos, quando escutou de alguém a notícia de que o prefeito estava morto. "Ele morreu no dia do aniversário da minha mãe. E na hora não recebi explicação nenhuma sobre o motivo da morte. Apenas disseram que ele havia falecido. Só depois de um tempo eu soube o que havia acontecido", diz Julio.
"Minha mãe sofreu muito, mas não comentava a respeito. Aquilo destruiu com a nossa família. Machuca muito até hoje. Eu só fui me dar conta de que meu pai foi um assassinado político quando tinha uns vinte anos."
O relatório da Comissão Nacional da Verdade sobre Higino João Pio aponta as diversas inconsistências da versão dada pelos militares.
O documento aponta que o laudo necroscópico feito à época por José Caldeira Ferreira Bastos e Léo Meyer Coutinho sustenta diversas falsidades.
"O laudo afirma que a situação eliminava a possibilidade de ter havido luta, disputa e violência", escreve a CNV.
De acordo com o relatório, "várias versões que constam no laudo inicial foram refutadas, uma vez que as fotos davam margem a outras interpretações, principalmente no que diz respeito a versão do suicídio. Pelo contrário, segundo as fotos, ele [Higino] estaria com os pés completamente apoiados no chão, refutando a tese central defendida nos primeiros laudos. Após análise dos laudos e depoimentos, foi desconstruída a montagem criada para sustentar a versão de suicídio. As encenações para justificar mortes sob tortura foram comumente utilizadas pelo regime".
Um novo laudo feito por quatro peritos em maio de 2014 traz detalhes técnicos que embasam as conclusões da CNV. "A posição do cadáver é de toda atípica", diz o documento.
"As regiões plantares de ambos os pés encontravam-se completamente apoiadas no piso, estando os respectivos dedos comprimidos contra a parede do banheiro. A sustentação do corpo é incompatível com a aplicação contínua da força necessária para produzir a constrição do pescoço. As fotografias também demonstram que ambos os membros superiores encontravam-se flexionados e voltados para a parede, em posição incompatível com o relaxamento produzido na morte, tendo Higino Pio muito provavelmente sido colocado após a rigidez cadavérica ter se instalado."
A altura do ponto de fixação do arame no registro do banheiro, a distância entre esse ponto e o nó do laço que envolvia o pescoço de Higino e o comprimento do arame são outros pontos levantados pelos especialistas para refutar o suicídio.
Além disso, o arame sequer estava amarrado ao registro, apenas fixado de forma "tênue".
Em 2018, o Ministério Público Federal de Santa Catarina denunciou seis envolvidos na morte de Higino Pio.
Entre as acusações, estavam denunciação caluniosa, sequestro e falso testemunho. Em 2019, porém, o TRF4 rejeitou a denúncia com base na Lei da Anistia.
"Prefiro deixar assim [sem punição]. Eu não tinha a expectativa de que eles fossem punidos", diz Julio. Ele, no entanto, pretende pleitear uma indenização junto ao Estado Brasileiro.
O filho de Higino Pio vive em Balneário Camboriú até hoje, onde é dono de uma construtora. Sobre viver em uma cidade com tantos apoiadores da direita, ele diz que é "neutro", ou seja, não se considera nem de direita nem de esquerda.
"Não tenho nada contra a Lula, só quero que os governantes façam o trabalho deles. Não votei em nenhum dos dois [Lula e Jair Bolsonaro] na última eleição. Mas, se fosse votar, votaria no Lula porque o Bolsonaro fala muita bobagem", diz Julio.
A vereadora Jade Martins Ribeiro, do MDB, foi a responsável pelo requerimento que pede a transferência do corpo de Higino Pio de Itajaí para Balneário Camboriú.
"A prefeita [Juliana Pavan, do PSD] chamou o Julio Cesar Pio e o Júnior Pio, que é neto do Higino, para consultá-los acerca do interesse em trazer os restos mortais para Balneário, e eles manifestaram essa vontade", diz Jade.
"É uma família que tem história política na cidade. O outro filho que já faleceu, o Jorge, foi presidente da Câmara aqui em Balneário."
De acordo com a vereadora, a ideia é que o translado do corpo aconteça no dia 20 de julho, aniversário da cidade.
"Com todas as honrarias, com guarda municipal, corpo de bombeiros", diz Jade. Ela conta que também pediu a retificação das atas da prefeitura de 1969 que registram a transmissão do cargo de prefeito para o então presidente da câmara.
"Essas atas apenas mencionam o falecimento do Higino Pio, o que já foi um ato de coragem na época. Pedimos para que sejam aditadas e mencionem também o motivo do falecimento."

A votação do requerimento sobre o aditamento das atas aconteceu na terça-feira (25/3). O único vereador a votar contra foi Jair Renan Bolsonaro.
Jade diz que, até o momento, nenhum outro vereador se opôs abertamente às homenagens a Higino Pio. Ela avalia que isso se deve ao fato de que a importância histórica da família Pio para a cidade vem antes de possíveis questões políticas.
O PL do ex-presidente Bolsonaro tem a maior bancada da câmara de Balneário Camboriú, com seis vereadores de um total de dezenove.
Seu filho Jair Renan foi eleito vereador como o candidato mais votado das últimas eleições, com 3033 votos. A BBC procurou a liderança local do partido para comentar, mas não recebeu resposta.
A BBC News Brasil tentou, por meio de mensagens e ligações, falar com o vereador Guilherme Cardoso, líder da bancada do PL em Balneário Camboriú, mas não obteve resposta. Jair Renan tampouco respondeu ao contato feito pela reportagem.
A BBC também procurou José Caldeira Ferreira Bastos, médico legista da Diretoria de Polícia Técnica e Científica na época do crime.
Ele foi o responsável pelo laudo necroscópico que falsificou a causa da morte de Higino. É um dos fundadores e até hoje integra a equipe do IDAP, Instituto de Diagnóstico Anátomo Patológico, em Florianópolis.
Sua secretária disse que ele estava se preparando para passar por uma cirurgia e não poderia falar com a reportagem.
O outro médico legista envolvido no caso, Léo Meyer Coutinho, afirmou à CNV que não se lembra de ter ido à Escola de Aprendizes assinar o laudo de Higino e que existe a possibilidade de que ele sequer tenha examinado o corpo.
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