'Mando meu filho para a escola com uma cópia do passaporte na mochila e um contato de emergência, caso eu seja deportado'
As organizações de defesa dos migrantes recomendam que aqueles que são indocumentados tenham um plano familiar pronto, incluindo quem vai cuidar dos filhos, caso os pais sejam detidos e expulsos do país.

"Se vocês forem deportados, o que vai acontecer comigo e com meu irmãozinho? Vou ficar sozinha cuidando dele?
Angustiados com as perguntas da filha adolescente, Marisela e Mario* decidiram participar naquele sábado, no fim de novembro, de uma sessão de assessoria gratuita organizada por um grupo de defesa dos migrantes em uma escola no centro de Los Angeles.
É + que streaming. É arte, cultura e história.
Fazia apenas duas semanas que Donald Trump havia vencido a eleição presidencial, prometendo realizar "a maior deportação da história dos Estados Unidos".
Embora tenham chegado da Guatemala há quase duas décadas, eles ainda estão em situação irregular — e tinham esperança de que os advogados oferecessem alguma alternativa para obter residência legal.
Em vez disso, eles saíram da escola com uma ideia clara: o mais urgente era deixar tudo organizado para que seus filhos, cidadãos americanos por nascimento, não acabassem sob custódia do Estado, caso eles fossem detidos e expulsos do país.
Já se passaram quatro meses, e Marisela garante que está tudo pronto. "Montamos uma pasta com documentos, e não mando mais meu filho para a escola sem uma cópia do passaporte na mochila ou um contato de emergência", diz ela à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, por telefone.
Isso faz parte do que as organizações e os especialistas em direito chamam de "plano de preparação familiar", algo que cada vez mais famílias com status de imigração misto — com pelo menos um membro indocumentado — estão fazendo.
"Isso envolve ter conversas desconfortáveis e tomar decisões dolorosas, mas ser precavido facilita na hora de lidar com uma emergência e suas consequências", explica à BBC News Mundo Kristina Lovato, diretora do Centro de Imigração e Bem-Estar Infantil (CICW, na sigla em inglês) da Universidade da Califórnia em Berkeley.
Maior risco de deportação
Lovato sabe do que está falando: ela estudou o impacto da separação familiar devido às deportações no primeiro mandato de Trump (2017-2021) em uma série de lares latinos em Los Angeles.
Ela descobriu que as batidas migratórias levaram a mudanças na estrutura familiar, passando geralmente de lares biparentais e de dupla renda para famílias chefiadas principalmente por mulheres após a repatriação do marido; embora ela também tenha entrevistado menores que acabaram morando com parentes ou em casas de acolhimento.
E, entre esses casos, ela se deparou com situações que variavam desde insegurança financeira e dificuldade de acesso a moradia estável, passando por evasão escolar, medo de acessar serviços de saúde e perda de vida social, até trauma, ansiedade e depressão.
Agora, com Trump de volta à Casa Branca, o cenário piorou "drasticamente", alerta a especialista.
"Desde [quando Trump tomou posse em] janeiro, o novo governo fez uma grande mudança nas políticas de imigração" — e a população em risco de detenção e deportação é maior, segundo ela.

Atualmente, há mais de seis milhões de famílias com status de imigração misto nos EUA — cerca de 5% do total, de acordo com dados do Pew Research Center.
E, de acordo com os dados gerenciados pela CICW, pelo menos um dos pais de 5,9 milhões de crianças é indocumentado.
Somam-se a isso os mais de 500 mil que têm pais amparados pelos programas Daca (sigla em inglês para Ação Diferida para Chegadas na Infância) e TPS (sigla em inglês para Status de Proteção Temporária), "programas que hoje estão ameaçados", adverte Lovato.
"Assim como os mais de 300 mil menores que são indocumentados", ela acrescenta.
O que inclui um 'plano de preparação familiar'?
Os especialistas enfatizam que não existe um plano que funcione para todos os casos, e que cada pessoa deve procurar assistência jurídica, descobrir quais são os caminhos disponíveis para a regularização, e se informar para que possam fazer valer seus direitos constitucionais perante um agente de imigração.
O Centro de Recursos Legais para Imigrantes (ILRC, na sigla em inglês) oferece em seu site um modelo e instruções para começar a se preparar, além de uma série de opções de cuidados infantis disponíveis na ausência de um ou de ambos os pais.
- Decida que tipo de plano de cuidado infantil você deseja implementar se estiver ausente (esses planos variam ligeiramente de Estado para Estado):
- Acordo verbal. Este é o mais informal. Não é necessário nenhum documento, mas quem for escolhido como cuidador não terá poder legal para tomar decisões médicas ou escolares.
- Declaração juramentada de autorização para cuidador. O cuidador assim autorizado poderá tomar certas decisões escolares e médicas, sem afetar a custódia.
- Tutela legal. Este é o acordo mais formal, e um tribunal deve nomear um tutor. A tutela concede a custódia legal e física total da criança. Para recuperar os direitos parentais, é necessário fazer uma solicitação perante um tribunal, e o juiz vai determinar o que é melhor para o menor.
- Tenha uma procuração em mãos, se precisar. É um documento escrito e assinado que dá a outra pessoa a autoridade para agir em seu nome de maneiras específicas, como administrar suas finanças, usar seu dinheiro para pagar seu financiamento imobiliário ou sustentar seu filho.
- Se o seu filho tiver um problema de saúde ou tomar medicamentos, anote os nomes, incluindo instruções, informações sobre o médico e o seguro de saúde. Mantenha uma cópia em sua pasta de documentos importantes, entregue uma à escola e uma terceira ao adulto que vai cuidar do seu filho. E diga ao seu filho onde encontrar as informações se você não estiver presente.
- Certifique-se de que todos os seus filhos tenham passaportes. Se o seu filho nasceu nos EUA, acesse www.travel.state.gov para obter mais informações sobre como obter um passaporte americano. Se ele nasceu em outro país, verifique as informações com a respectiva embaixada ou consulado.
- Informe seus familiares e os contatos de emergência sobre como encontrar o menor, se você for detido pelo Serviço de Imigração e Alfândega (ICE, na sigla em inglês).
- Converse com sua família sobre o plano.
- Sem preocupá-los, garanta aos seus filhos que eles serão cuidados se, por algum motivo, você não puder cuidar deles, mesmo que por um curto período de tempo. Informe-os sobre quem cuidará deles até que você possa fazer isso.
Quem será o próximo?
Todos eles podem cruzar com agentes do ICE ou ser alvo de batidas que estão sendo realizadas em todo o país.
"Há novas ordens executivas para ampliar o número de agentes de imigração e de patrulha de fronteira, e a capacidade de colaboração entre as agências federais eas forças policiais locais foi ampliada", diz Lovato.
Somam-se a isso as tentativas do governo Trump de retirar o financiamento federal das chamadas "cidades santuário", aquelas onde as autoridades municipais não cooperam com agentes federais em questões de imigração.
Ela menciona a polêmica lei Laken Riley, a primeira sancionada por Trump desde que assumiu o cargo, que abre as portas para que uma acusação de roubo ou furto contra um imigrante indocumentado seja motivo para prisão e até mesmo deportação.

O novo governo também ampliou o alcance das deportações aceleradas, um procedimento anteriormente destinado a pessoas detidas a menos de 160 quilômetros da fronteira, e que estivessem nos EUA há menos de duas semanas.
Desde janeiro, ela é aplicável em todo o país, e vale para imigrantes que não podem provar que residem nos EUA há mais de dois anos.
Além disso, de acordo com um memorando interno obtido e publicado recentemente pela agência de notícias Reuters, os agentes de imigração receberam instruções para localizar e expulsar em quatro fases milhares de crianças migrantes que entraram no país sem os pais.
Em 2024, mais de 99.400 dos chamados menores migrantes desacompanhados foram deixados nas mãos de tutores legais, de acordo com dados do Serviço para Crianças e Famílias (ACF, na sigla em inglês), uma divisão do Departamento de Saúde e Serviços Humanos. No ano fiscal anterior, o número passou de 113 mil.
"E há outra série de ordens executivas, como a ridiculamente intitulada 'Encerrando o subsídio público às fronteiras abertas', que na verdade não mudam nada, mas geram muita confusão e medo em torno dos serviços disponíveis para indivíduos indocumentados", resume.

No último mês, segundo dados federais, o governo realizou 23 mil detenções, notavelmente mais do que durante a presidência de Joe Biden, embora o número diário tenha diminuído desde os primeiros dias após a posse de Trump.
E as expulsões não acompanharam o ritmo das detenções, fazendo com que os migrantes se amontoassem nos centros de detenção do ICE.
Thomas D. Homan, nomeado "czar da fronteira" e responsável pelas operações de deportação, admitiu ao jornal americano The New York Times que Trump teria pedido a ele para aumentar as detenções.
"Quanto mais dinheiro tivermos, mais bem-sucedidos seremos", respondeu Homan, referindo-se aos recursos reduzidos do ICE para isso, o que deixou muitos se perguntando qual grupo será afetado em seguida.
Mais conscientização e preparação
Mas a criação de políticas migratórias mais draconianas levou a uma maior conscientização, organização e preparação, de acordo com especialistas.
"Há um trabalho melhor local por parte das organizações de defesa dos migrantes, centros comunitários, escolas e igrejas que estão colaborando para promover um senso de comunidade e pertencimento e fornecer apoio e assistência às famílias que estão muito, muito assustadas", explica Lovato.
"Há muita desinformação circulando", diz à BBC News Mundo Andrés Martínez, professor de uma escola em Boyle Heights, um bairro histórico e predominantemente latino de Los Angeles.
"E os alunos começaram a nos perguntar o que vai acontecer com seus pais e responsáveis, se eles vão ficar bem, se vão poder ir para a universidade", acrescenta Martínez, que ensina inglês para recém-chegados ao país.
Em resposta, grupos de voluntários e ativistas em praticamente todos os Estados do país vêm oferecendo workshops e palestras há semanas sob o título "Conheça seus direitos", onde enfatizam aos participantes que eles podem reter informações pessoais e se recusar a assinar quaisquer documentos, distribuem panfletos e oferecem assistência jurídica por telefone.
Eles também distribuem o chamado "cartão vermelho", disponível em 19 idiomas, que lembra os imigrantes de seus direitos constitucionais e descreve os passos a seguir ao interagir com os agentes do ICE.

E as patrulhas comunitárias percorrem os bairros e testemunham batidas para garantir que todos os protocolos sejam seguidos, e para lembrar às famílias que elas não são obrigadas a deixar os agentes entrar se não tiverem um mandado.
As autoridades do governo Trump atacaram essas ONGs e voluntários, alegando que o que eles fazem é "ajudar" os imigrantes sem residência legal a "desafiar" os agentes do ICE e a "se esconder".
"Eles dizem que é 'Conheça seus direitos', eu chamo isso de 'Como escapar da prisão'", afirmou Homan, o "czar da fronteira".
Seja como for, todo esse esforço também se enquadra em uma conscientização cada vez maior da necessidade de se antecipar e deixar tudo pronto, sobretudo um plano que inclua o cuidado infantil.
"As famílias estão consultando organizações e especialistas em direito sobre a documentação que devem deixar pronta, estão fazendo com que seus filhos levem cópias de seu status legal na mochila, estão assinando autorizações, indicando quem vai cuidar dos menores na sua ausência, e informando todos os membros da família sobre o que está planejado", diz Lovato.
Ela destaca a importância de comunicar o plano a todos os membros da família, sem exceção. "É fundamental dizer às crianças: 'Olha, se algo acontecer, esta é a pessoa que vai cuidar de vocês'", afirma.
Marisela e Mario assinaram uma declaração juramentada de autorização para cuidador — assim, uma prima distante com residência permanente [o chamado green card] vai poder tomar decisões escolares ou médicas que afetem seus filhos, se eles forem expulsos do país.
Eles também estão considerando uma tutela legal, um acordo mais formal.
"Porque o que mais nos preocupa é que nos mandem de volta, e nossos filhos sejam levados para um abrigo" — e permaneçam sob a custódia do Estado.

"Houve uma campanha relativamente bem-sucedida na comunidade de migrantes e, quando converso com meus clientes, me deparo com perguntas mais ponderadas e matizadas, porque as questões básicas já são conhecidas por eles", disse à BBC News Mundo Kate Lincoln-Goldfinch, advogada de imigração que atua na região central do Texas.
"Toda pessoa indocumentada precisa consultar um advogado de imigração sobre sua situação", ela enfatiza, e estar bem preparada para o caso de uma emergência.
"Porque quando acontece uma detenção, é como um incêndio: ninguém tem tempo para pensar e depois agir", explica.
"Portanto, é fundamental reservar um tempo antes, por mais desagradável que seja, para pensar em quem vai buscar as crianças; se a escola tem as autorizações necessárias; se reunimos os documentos em uma pasta, incluindo informações sobre contas bancárias; se sabemos onde estão as chaves do carro e o seguro... E ter tudo isso claro, e em um só lugar, para que alguém que precise possa vir buscar e administrar nossas vidas por nós", conclui.
*Os nomes foram alterados para proteger a identidade dos entrevistados.
- O que diz a lei do século 18 que Trump usou para deportar venezuelanos para El Salvador
- 'A crueldade parece ser o princípio central da política de hoje'
- Entrar ou viver nos EUA em situação irregular é crime?