Agência BBC

Meditação, ioga, astrologia: jovens vivem retorno ao sagrado, diz sociólogo francês

Isso não significa necessariamente um maior vínculo a religiões tradicionais, diz Michel Maffesoli, mas uma ampliação de diversas formas de religiosidade e espiritualidade e uma proximidade com tudo o que é transcendente.

11:09 | Fev. 25, 2025

Por: Letícia Mori - Da BBC News Brasil em São Paulo

Homem jovem branco de costas, de cabelo curto, olha para um céu cheio de nuvens
Getty Images
Há um retorno de emoções, sentidos e religiosidade na construção do conhecimento, diz sociólogo

O pensamento racionalista está em declínio, diz o sociólogo francês Michel Maffesoli.

Para as gerações mais jovens, o conhecimento não pode ser construído puramente pela razão, mais precisa levar em conta a emoção e os sentidos, argumenta o professor emérito da Universidade de Sorbonne, na França.

Isso não significa necessariamente um retorno às religiões tradicionais, diz o sociólogo, mas uma ampliação de diversas formas de religiosidade.

Ou seja, existe uma disseminação da espiritualidade entre os jovens de forma difusa, que resulta em uma proximidade com tudo o que é transcendente - da astrologia à ioga, do cristianismo ao candomblé, da arte à meditação.

Reconhecido internacionalmente por suas análises da cultura e das transformações sociais contemporâneas, Maffesoli popularizou o conceito de "tribo urbana" — agrupamentos sociais espontâneos unidos por um estilo de vida — que desafiou a ideia de um "sociedade de massas".

Ele acaba de lançar no Brasil seu livro Nostalgia do Sagrado (PucPress), no qual faz reflexões sobre mudanças contemporâneas na conexão das pessoas com a religiosidade, o sagrado e o metafísico.

Ele afirma que, após um processo de secularização (afastamento da religião ou perda da sua relevância) da sociedade ocidental — especialmente na filosofia, na produção dos conhecimentos e nas artes — a conexão com algum tipo de espiritualidade passou a fazer falta.

"Há uma saturação em relação ao racionalismo, e precisamos falar em outras formas de construir o conhecimento", diz ele em entrevista à BBC News Brasil.

E a internet se tornou central nesse processo. "É um dos espaços dessa busca pelo incerto e imponderável", afirma.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Divulgação
Maffesoli lançou no Brasil o livro 'Nostalgia do Sagrado'

BBC News Brasil - O senhor usa "nostalgia do sagrado" como título do seu livro. O termo nostalgia se refere à saudade de algo que se foi. Mas quando olhamos para a sociedade em termos demográficos, a maioria da população nunca deixou de ser religiosa. Podemos mesmo falar em processo de secularização da sociedade e depois retorno ao religioso? Não seria possível argumentar que a religião nunca perdeu tanta relevância?

Michel Maffesoli - Quando eu falo em [secularização da] sociedade, estou me referindo à chamada société officieuse [elite que detém o controle "não oficial" da sociedade], então, aos intelectuais na política, os acadêmicos, jornalistas, etc. A maioria das pessoas simplesmente continuaram a ser religiosas.

Costumamos dividir a história em "épocas", então, temos a era moderna que começa com Descartes, com o cartesianismo, reforçado pelo Iluminismo no século 18 e que se estrutura no século 19. Foi uma época de secularização, de "evacuação" do sagrado. O desencanto com o mundo que, segundo [o sociólogo] Max Weber, começou no século 17, foi essencial para essa parte da sociedade e para o pensamento da época.

Então, na modernidade, se estabeleceu essa intelectualidade muito materialista, da dialética histórica, da ironia etc. É à dominância dessa corrente de pensamento que nos referimos quando falamos em secularização.

E com ela veio uma incapacidade de entender o instinto, as emoções, os afetos, as paixões, etc.

Mas, quando falamos em pós-modernidade, minha hipótese é que há um retorno do sagrado que se desenvolve de formas muito diversas. Agora vejo que, na França, o materialismo marxista desapareceu quase completamente entre os intelectuais.

De certa forma, é um ato de equilíbrio nas histórias humanas. Houve um tempo em que o sagrado perdeu importância, mas agora estamos em outra era onde há um retorno disso, especialmente para as gerações mais jovens na Europa.

Getty Images
Há uma saturação do racionalismo na pós-modernidade, diz Maffesoli

BBC News Brasil - Como essa mudança afeta o resto da sociedade, ou seja, quem não faz parte dessa elite?

Maffesoli - Existe uma lacuna, um distanciamento, porque parte das elites políticas, os acadêmicos e intelectuais permanecem nos valores modernos. Vejo que na França há muitas insurreições, revoltas, manifestações porque os políticos não estão mais em sintonia com as pessoas, cujo pensamento não corresponde mais a categorias como direita e esquerda. Da mesma forma, os políticos se apegam a valores modernos e não entendem o que realmente é atraente hoje.

BBC News Brasil - Esse retorno do sagrado não gera um medo nos grupos mais secularizados de que haja um retorno do obscurantismo, de uma certa irracionalidade?

Maffesoli - Veja, eu faço uma crítica do racionalismo, não da racionalidade. Ou seja, do racionalismo como sistematização desse pensamento do desencanto onde evacuamos oficialmente a referência a Deus ou ao espiritual. Esse racionalismo é um dos grandes elementos da modernidade. Já a racionalidade, ou seja, o uso da razão, é uma característica individual, de cada um de nós, e da nossa espécie.

Proponho falar em uma "razão sensível": levar em consideração a importância da emoção e dos sentidos na construção do conhecimento e do sentido. São Thomas de Aquino [filósofo do século 13] mostrou a conexão que existia entre corpo e mente. Nunca há nada no intelecto que não tenha estado primeiro nos sentidos, isto é, no corpo humano.

Mas sim, claro, é possível ver na França e na Europa em geral como certos intelectuais, políticos e jornalistas têm medo do retorno de uma irracionalidade. E é verdade que isso é assustador.

Essas elites continuam ancoradas nos valores modernos, na importância do racionalismo, e não conseguem entender [esse novo movimento]. Na França, isso é um problema real. [A elite] não consegue entender que outra maneira de estar no mundo está ressurgindo, principalmente entre as gerações mais jovens, que não são racionalistas.

Getty Images
Pensamento cartesiano domina a visão de mundo ocidental há três séculos, diz Maffesoli

BBC News Brasil - Você tem alguma hipótese de por que as gerações mais jovens estão abandonando o racionalismo?

Maffesoli - Fui aluno do [antropólogo] Gilbert Durant, que é um grande especialista em imaginário. Ele fala de estruturas antropológicas e da importância do imaginário, em especial do imaginário religioso. O imaginário, o simbólico, cria estruturas, forma um sistema. E, em certos momentos, essa estrutura é marginalizada, se torna secundária. Isso é secularização.

Depois de um certo ponto, de três ou quatro séculos de secularização, há uma saturação disso. O mecanismo de saturação é um mecanismo muito simples, mas que nos permite entender que há um cansaço em relação ao racionalismo. As pessoas ficam cansadas e desgastadas, é uma desestruturação da grande cultura moderna.

Se você olhar historicamente, a cada três séculos, há uma saturação do que é dominante naquele momento. Estamos saindo de uma era onde o que domina é a razão humana, é Apolo [deus grego que representa essa razão], para uma era dionisíaca [Dionísio representa o prazer, os sentidos].

Getty Images
Jovens buscam transcendência de diversas formas, afirma sociólogo

BBC News Brasil - O senhor fala de uma transformação na expressão do sagrado. Que transformação é essa?

Maffesoli - Na verdade, a palavra que uso com mais frequência é a palavra sacro, não sagrado. O autor [e filósofo] Jacques Maritain usa esse termo. Pego essa expressão para falar de algo que se difunde, se difrata, que, de alguma forma, "contamina" a sociedade. O que vejo na França é um retorno das missas tradicionais, de peregrinações, dos jovens que vão para a Jornada Mundial da Juventude. É uma série de pequenas coisas.

Claro que falo pela Europa e França, não sou especialista em Brasil, embora ame e venha aqui com frequência. Mas é curioso: um dos meus pesquisadores fazia um estudo em Paris, a cidade onde nasceu o racionalismo, e encontrou quatro ou cinco grupos franceses de candomblé. Para mim isso é um exemplo interessante dessa difração da religiosidade. E também meditação, ioga, astrologia.

Não é necessariamente um retorno a religião estruturada, mas uma religiosidade disseminada sem ter um aspecto estritamente institucional. Uma busca por novas formas de vivenciar a vida, que pode ser pela arte, pelo convívio, por expressões culturais que envolvem a emoção compartilhada.

Getty Images
Meditação pode ser uma expressão da religiosidade

BBC News Brasil - Qual o papel da internet nessa movimentação?

Maffesoli - É importante. Nas redes sociais, na internet, vemos a multiplicidade desses pequenos grupos, que se encontram, espalham ideias. Dou sempre um exemplo: encontrei um grupo de jovens que estão trabalhando na Summa Theologica de São Tomás de Aquino, que é um trabalho muito difícil. Então, a internet é um dos espaços de expressão dessa busca pelo incerto e imponderável.

BBC News Brasil - Como vê o Brasil nisso tudo?

Maffesoli - A primeira vez que vim ao Brasil, em 1980, o que vi em São Paulo, em Recife... o que me marcou foi que os intelectuais por aqui eram muito dominados por um materialismo marxista e por isso tinham dificuldade de entender que havia uma difração dessa religiosidade.

Nas minhas últimas viagens, em especial em novembro (de 2024), quando estive no Rio de Janeiro e em Porto Alegre, havia muita gente em uma grande conferência sobre o imaginário. Fiquei impressionado. Encontrei um encantamento com a vida cotidiana.

Acho que houve uma mudança ao nível global e os intelectuais mais jovens não têm medo de abordar esse tema da imaginação. Mas digo isso com cautela, não sou especialista em Brasil.