Agência BBC

Os judeus forçados a trabalhar nas câmaras de gás no Holocausto: 'Perguntei a mim mesmo: onde está Deus?'

Nos campos de extermínio criados pela Alemanha nazista, como Auschwitz-Birkenau, uma unidade especial de prisioneiros judeus chamada Sonderkommando foi encarregada de guiar outros judeus para as câmaras de gás e de remover e cremar seus corpos.

Judeus húngaros, principalmente mulheres e crianças chegando a Auschwitz-Birkenau, na Polônia ocupada pelos alemães, em junho de 1944
Getty Images
Pelo menos 1,3 milhão de pessoas foram enviadas para o campo de concentração de Auschwitz-Birkenau durante a guerra, quase 90% eram judeus

Aviso: esta reportagem contém imagens extremamente fortes, incluindo cadáveres, e descrições de assassinatos em massa.

Eles eram chamados de Sonderkommandos — membros de uma unidade especial criada pelos nazistas para trabalhar em campos de extermínio como Auschwitz-Birkenau durante o Holocausto.

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Mas eles não eram soldados alemães, nem sequer aliados.

As unidades dos Sonderkommando consistiam em prisioneiros judeus deportados para Auschwitz de 16 países diferentes, e o seu trabalho alimentava a máquina de matar.

"Trabalhei nos crematórios. Levava pessoas [corpos] das câmaras de gás para os fornos", contou Dario Gabbai.

O ex-prisioneiro do campo de concentração de Auschwitz foi uma das últimas testemunhas oculares da chamada "solução final" — o plano nazista para erradicar o povo judeu da Europa, que culminou no assassinato de seis milhões de judeus.

Dario Gabbai
Getty Images
Dario Gabbai falou sobre suas provações a instituições dedicadas a manter viva a memória do Holocausto, como a USC Shoah Foundation, em novembro de 2018

O complexo de Auschwitz-Birkenau é o local do maior assassinato em massa da história da humanidade — estima-se que 1,1 milhão de pessoas foram mortas, das quais mais de 90% eram judeus. Este número é maior do que as perdas sofridas pelo Reino Unido e pelos EUA durante toda a guerra.

Auschwitz-Birkenau foi finalmente libertado pelas tropas soviéticas em 27 de janeiro de 1947. Esta data é agora lembrada como o Dia da Memória do Holocausto.

Corte de cabelo

Cabelo coletado das mulheres assassinadas em exposição no Museu de Auschwitz-Birkenau
Getty Images
Cabelo coletado das mulheres assassinadas em exposição no Museu de Auschwitz-Birkenau

Os membros do Sonderkommando eram forçados a ajudar no processo dos assassinatos. As unidades paramilitares de elite de Hitler, conhecidas como SS, eram responsáveis ​​pela execução propriamente dita.

Antes de os corpos serem cremados, os sonderkommandos tinham que realizar uma busca nas cavidades das vítimas à procura de implantes, como dentes de ouro, e objetos de valor escondidos.

Gabbai tinha a tarefa específica de cortar e recolher os cabelos das mulheres assassinadas.

Décadas depois, ele relembrou como se sentia ao conversar com uma organização americana dedicada a entrevistar sobreviventes do Holocausto, a USC Shoah Foundation.

"Perguntei a mim mesmo: Como posso sobreviver? Onde está Deus?", contou Gabbai.

Um polonês disse a ele para se manter forte, e ele levou esse conselho a sério.

"Eu disse a mim mesmo: eu sou um robô... feche os olhos, e faça o que tiver que ser feito sem perguntar muito", acrescentou.

Depoimentos

Gideon Greif com sete israelenses que foram sonderkommandos em Auschwitz
Gideon Greif
Em 1993, Gideon Greif levou israelenses que foram sonderkommandos e seus familiares para Auschwitz-Birkenau, e gravou seus depoimentos pessoais lá

Na década de 1980, o historiador do Holocausto baseado em Israel, Gideon Greif, começou a pesquisar sobre os sonderkommandos.

Greif documentou a experiência de 31 sonderkommandos em seu primeiro livro sobre eles, We Wept Without Tears (Choramos Sem Lágrimas, em tradução livre).

Um dos sonderkommandos documentados por Greif foi Ya'akov, irmão de Dario Gabbai.

Ya'akov viu dois de seus primos chegando à câmara de gás. Ele os instruiu a se sentarem perto de onde o gás era liberado para que tivessem uma morte rápida e indolor.

"Por que eles deveriam sofrer tanto?", explicou ele mais tarde a Greif.

Mulheres judias correndo em direção à câmara de gás após se despir
The State Museum Auschwitz-Birkenau
Uma das três fotos clandestinas tiradas por uma unidade do Sonderkommando mostra mulheres judias correndo em direção à câmara de gás

Josef Sackar foi o primeiro sonderkommando que Greif conheceu, em 1986. Sackar era frequentemente destacado para trabalhar no local onde as mulheres eram obrigadas a se despir.

"Virava minha cabeça para outra direção, e me certificava de que elas não ficassem muito constrangidas", disse Sackar a ele.

Shaul Chasan revelou, por sua vez, que tinha que retirar os corpos dos mortos das câmaras de gás e colocá-los nos elevadores que os levariam para os crematórios.

Ele contou a Greif como sempre se esforçava para garantir que os corpos não fossem arrastados sobre a sujeira e os detritos no chão das câmaras de gás.

Outro sonderkommando testemunhou como um grupo de crianças polonesas nuas começou a cantar Shema Yisrael, uma oração judaica, e entrou na câmara de gás com perfeita disciplina.

Valas em chamas

Vítimas do Holocausto sendo cremadas em uma vala
The State Museum Auschwitz-Birkenau
Foto clandestina mostrando cremação de corpos a céu aberto

O memorial do Holocausto de Israel, Yad Vashem, observa como os assassinatos aumentaram após o início da deportação dos judeus húngaros em maio de 1944.

"Em apenas oito semanas, cerca de 424 mil judeus foram deportados para Auschwitz-Birkenau."

O número de mortes excedeu em muito a capacidade dos crematórios. Mas o oficial alemão encarregado dos crematórios, Otto Moll, foi implacável, e ordenou aos sonderkommandos que cavassem valas para queimar os corpos.

Uma foto clandestina tirada por um sonderkommando mostra claramente corpos sendo incinerados numa vala a céu aberto — mais tarde, a imagem serviu de evidência sobre o que havia acontecido no campo.

Rebelião fracassada

Fornos de cremação no campo de concentração alemão de Birkenau-Auschwitz
Getty Images
Normalmente, quatro a cinco corpos eram cremados juntos nos fornos dos crematórios de Auschwitz

Os sonderkommandos recebiam comparativamente mais comida e melhores condições de vida do que o restante dos presos, que se alimentavam apenas de sopa aguada.

No entanto, o trabalho oferecia pouca proteção. Os nazistas costumavam matar os membros do sonderkommando a cada seis meses, e convocar novos recrutas.

Os nazistas aplicavam uma série de punições para provocar medo. Isso incluía fuzilamento, jogá-los em fogueiras, tortura, espancamento e ser rolado nu sobre cascalho.

"Eles estavam em estado de choque constante. Viam milhares de judeus serem assassinados todos os dias. Foi um grande desafio permanecer vivo", diz Greif.

Eles também eram alojados separadamente e monitorados o tempo todo. No entanto, em um determinado momento, eles reagiram em um evento conhecido como rebelião do sonderkommando.

"Dois irmãos estavam envolvidos no planejamento do levante de 7 de outubro de 1944. Foi uma revolta judaica. Uma história de coragem. Deveria ser escrita em letras douradas", afirma Greif.

Naquele dia, alguns prisioneiros do sonderkommando atacaram seus guardas da SS com pedras e incendiaram um crematório. O ataque foi rapidamente reprimido, e 451 sonderkommandos foram mortos a tiros.

Documentando as atrocidades

Sonderkommandos mostrando seu trabalho de transportar os corpos para os crematórios
Getty Images
Após a libertação de Auschwitz, os soviéticos fizeram uma reconstituição do processo de cremação com os sonderkommandos

Outros sonderkommandos, como Marcel Nadjari, registraram sua raiva em pedaços de papel.

"Não estou triste por morrer, mas estou triste por não ser capaz de me vingar como gostaria", escreveu Nadjari, em novembro de 1944.

As cinzas de cada vítima adulta pesavam cerca de 640 gramas, segundo suas anotações.

O judeu grego escondeu seu manuscrito de 13 páginas em uma garrafa térmica, que ele fechou com uma tampa de plástico. Em seguida, colocou a garrafa em uma bolsa de couro e a enterrou.

As anotações deixadas por Nadjari e outros foram recuperadas anos mais tarde, e cuidadosamente decifradas. Elas agora são conhecidas como os Pergaminhos de Auschwitz.

Elas fornecem informações valiosas sobre a dimensão dos crimes.

Em busca de justiça

Gideon Greif
Gideon Greif
Greif diz que a unidade Sonderkommando foi criada para confundir os conceitos de criminoso e vítima

Apenas cerca de 100 sonderkommandos conseguiram sobreviver à guerra. Alguns desempenharam um papel ativo nos julgamentos dos crimes de guerra.

Henryk Tauber testemunhou contra o comandante da SS, Otto Moll.

"Em diversas ocasiões, Moll jogou pessoas vivas nas valas em chamas", lembrou Tauber durante o julgamento perante um tribunal militar americano.

Moll acabou sendo condenado e enforcado por seu papel em uma "marcha da morte".

No entanto, muitos criminosos nunca foram punidos. De um total de cerca de 7 mil funcionários em Auschwitz, apenas cerca de 800 enfrentaram o poder da lei, de acordo com Auschwitz, uma série de documentários da BBC/PBS.

Greif testemunhou contra supostos criminosos nazistas nos tribunais europeus, onde nazistas suspeitos ainda estão sendo julgados.

Gabbai acabou se mudando para Los Angeles, nos EUA, e morreu lá em 2020. Em 2015, ele fez uma visita a Auschwitz para marcar o 70º aniversário da libertação do campo. Ele contou à BBC o que o fez seguir adiante.

"Eu disse (a mim mesmo) que essa guerra iria acabar um dia e, quando ela acabasse, eu poderia sobreviver e contar as histórias para o mundo."

Essa reportagem foi originalmente publicada em janeiro de 2020.

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