Agência BBC

Excesso de telas em crianças pode causar sintomas que se confundem com autismo?

Especialistas alertam que ficar muitas horas por dia no celular, no tablet, no computador e na televisão pode afetar o comportamento e o desenvolvimento de habilidades importantes na infância. Algumas regras básicas ajudam a melhorar a relação da família com as telas.

Dois meninos mexendo com telas
Getty Images
Telas 'roubam oportunidades de aprendizado' das crianças, apontam especialistas

"As telas são um veneno. Eu não sabia o mal que estava fazendo ao meu próprio filho."

Nadia David Peres, de 45 anos, precisava aliar uma rotina atribulada no trabalho como médica aos cuidados com o pequeno Breno, que hoje está com três anos.

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Ela cumpria parte das horas do expediente em casa, realizando atendimentos à distância no período da tarde — e encontrou nas telas uma maneira de manter o filho entretido por longas horas.

Segundo a mãe, Breno passava uma média de seis horas por dia assistindo desenhos.

"Muitas vezes, para conseguir trabalhar, precisava deixá-lo no celular ou no tablet. E ele ficava ali quietinho, assistindo", relata ela.

Em março deste ano, porém, a situação começou a mudar de figura.

"Recebi uma carta da escola em que ele estudava que chamou a atenção para um comportamento muito parecido com alguns sintomas típicos do autismo", diz Peres.

"Ele não olhava nos olhos dos outros durante interações sociais, era agressivo com outras crianças, mordia, batia, não se concentrava em nenhuma atividade, se recusava a comer certos alimentos, tinha birras excessivas e não podia ser contrariado", lista ela.

Peres diz que a carta não chegou a surpreendê-la, pois ela já observava muitas dessas características do filho em casa. Mas receber o comunicado foi a gota d'água para finalmente buscar ajuda profissional.

"Marquei uma consulta com uma neuropediatra, que me perguntou sobre a rotina do Breno. Quando descrevi nosso dia a dia, ela constatou que estava tudo errado e meu filho tinha uma exposição excessiva às telas", conta Peres.

Após a avaliação, a família decidiu cortar totalmente o contato com esses aparelhos.

"E a melhora dele foi absurda. Em questão de duas semanas, o Breno passou a interagir mais, deixou de agredir os colegas, diminuiu as birras… Agora ele come de tudo e está muito mais feliz", descreve Peres.

"Eu realmente não fazia ideia de quão errados estávamos. Antes de fazer essa mudança e cortar as telas, eu ia em restaurantes, observava outras crianças chorando ou correndo e pensava: 'Gente, por que esses pais não dão um desenho para elas assistirem?'", lembra a mãe.

A neuropediatra que acompanha Breno ainda não descartou e nem confirmou um diagnóstico de autismo — o menino precisa ser acompanhado por mais um tempo, para observar como ele se desenvolve.

"Mas posso garantir que, a partir do momento que tiramos as telas, ele melhorou 70%", estima Peres.

Breno também está fazendo fonoaudiologia para lidar com um atraso na fala e, segundo Peres, as sessões também o ajudam a desenvolver a comunicação.

Nádia e Breno
Arquivo pessoal
Nádia percebeu uma mudança significativa no filho Breno quando cortou o uso de telas

É claro que, para conseguir lidar com esse movimento de extinção das telas em casa, a mãe precisou fazer uma série de mudanças na rotina.

"Eu e meu marido somos do interior de Minas Gerais e hoje moramos em Belo Horizonte. Não temos família aqui ou uma rede de apoio para nos ajudar com os cuidados. Muitas vezes, o único suporte é do meu outro filho, que está com 13 anos", relata ela.

"Precisei fazer adaptações na agenda, reduzir minha carga horária e abrir mão de alguns trabalhos que tinha."

"Mas entendo que é mais importante estar com o Breno nesse momento", complementa Peres.

A médica destaca que, a partir do momento que removeu os dispositivos, precisou criar novas formas de interagir com o filho.

"Nós começamos a conversar mais e a inventar brincadeiras. Ele passou a conversar com maior frequência e a dormir muito melhor."

Fenômeno recente em ascensão

A história de Peres está longe de ser única. No podcast "Mil e Uma Tretas", a atriz Thaila Ayala relatou uma situação bem parecida com o filho Francisco, que também tem três anos.

"Chamava [o Francisco] pelo nome e ele não respondia, as coisas que ele normalmente fazia, não fazia mais, não olhava mais no olho. Eu cheguei a pensar que ele tinha algum grau de autismo", disse ela.

Após a avaliação de um profissional de saúde, a orientação também foi reduzir o contato de Francisco com smartphones, tablets, computadores e televisões.

"Com toda a rede de apoio que eu tenho, cortamos [as telas]. Foram dez dias sem tela e eu tinha outra criança em casa. Fiquei muito chocada", relatou ela.

Esse trecho da entrevista foi compartilhado nas redes sociais — e diversas outras mães relataram casos parecidos com os próprios filhos.

Mas será que o contato com as telas pode de fato trazer esse impacto para as crianças? Elas chegam mesmo a desenvolver padrões de comportamento que podem até levantar suspeitas de autismo?

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que sim.

O neuropediatra Anderson Nitsche, do Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba, explica que o núcleo central do autismo "é a dificuldade de socialização e a tendência de um comportamento repetitivo e estereotipado, sem muita função".

"E o excesso de telas pode fazer com que algumas crianças desenvolvam esse comportamento, principalmente uma dificuldade de socializar e aquela tendência de repetir estratégias, conversas e falas que veem nos vídeos", contextualiza ele.

"Isso é algo relativamente comum e, quando o problema está relacionado às telas, o comportamento da criança muda quando há maior controle no tempo de exposição", complementa o especialista.

A psicóloga e neurocientista Mayra Gaiato, do Instituto Singular, em São Paulo, reforça que as telas não causam o autismo — é que o contato excessivo com conteúdos audiovisuais nos primeiros anos de vida pode afetar o desenvolvimento de certas habilidades ou influenciar a forma como a criança se comporta.

Vale lembrar que o autismo está relacionado à uma interação entre predisposição genética — pesquisas já identificaram centenas de mutações no DNA relacionados a esse transtorno — e o ambiente em que a criança cresce.

"O contato com as telas libera no cérebro um neurotransmissor chamado dopamina", pontua Gaiato.

"Em excesso, essa substância não consegue ser absorvida pelo sistema nervoso e pode suscitar descontroles emocionais e sensoriais."

"O problema é que, quanto mais se usa as telas, mais dopamina é liberada. E isso cria um vício que gera dependência, alteração no sono, problemas comportamentais, irritabilidade, falta de atenção e dificuldades de interagir socialmente", complementa a especialista.

Gaiato destaca que esse fenômeno pode acontecer até mesmo com desenhos educativos, feitos para idades específicas — cores, sons e imagens são altamente excitatórios e tornam qualquer outro estímulo, como um brinquedo de madeira, pouco atrativo.

Vale notar ainda que a maioria dos relatos de famílias e das observações de especialistas chamam a atenção para a reversibilidade dos sintomas nesses casos. Quando o tempo nas telas é reduzido ou completamente cortado, a criança volta a ter um padrão de comportamentos típico para a idade dela.

Um estudo da Universidade da Califórnia em Los Angeles, nos EUA, acompanhou um grupo de indivíduos um pouco mais velhos, na pré-adolescência, que foram enviados a um acampamento.

Esse grupo não teve contato nenhum com as telas durante a viagem — e os cientistas já puderam notar uma melhora na capacidade de reconhecer emoções e usar recursos de comunicação nas interações sociais deles, em comparação a uma turma de jovens que não mudou os hábitos e continuou a ver TV e a mexer no celular.

"Vemos claramente isso acontecer no consultório. Muitas vezes, de uma consulta para outra, quando os pais fazem a mudança no regime de telas, a criança que apresentava um comportamento muito próximo ao autismo volta mais organizada, menos irritada, fazendo contato social e com maior atenção", descreve Nitsche.

Criança vendo tela
Getty Images
Conteúdos vistos nas telas são altamente excitatórios — e podem tornar qualquer outra atividade enfadonha

O que dizem as evidências científicas?

A relação entre telas e sintomas similares ao autismo é algo relativamente novo e pouco estudado.

Há alguns poucos trabalhos acadêmicos publicados sobre o tema. Um deles, feito em 2020 por especialistas de três hospitais franceses, conclui que "a síndrome de superexposição precoce à mídia deve ser avaliada em crianças que apresentam atraso de fala com sintomas similares ao autismo".

Esse é um dos primeiros artigos a dar um nome para esse problema. Como mencionado no parágrafo acima, os autores o chamam de "síndrome de superexposição à mídia".

Já o psicólogo romeno Marius Zamfir cunhou em 2018 o termo "autismo virtual", que serve para descrever certas questões comportamentais em crianças de zero a três anos.

Segundo o especialista, essas manifestações incluem "deprivações sócio-afetivas e sensório-motores" e são causadas "por uma exposição de mais de quatro horas por dia ao ambiente virtual".

Na avaliação de Zamfir, indivíduos submetidos a esse regime prolongado de consumo de conteúdos audiovisuais apresentam "sintomas funcionais e comportamentais observados em crianças com transtorno do espectro autista (TEA)".

Vale reforçar que esses termos ainda não são consenso entre especialistas da área e nem aparecem em manuais de Psicologia ou Psiquiatria. São necessárias mais pesquisas para confirmar (ou descartar) a existência de um quadro desses.

Mas, pela observação dos próprios pais e dos profissionais de saúde que recebem essas crianças nos consultórios, esse é um fenômeno que chama cada vez mais atenção na prática.

Gaiato lembra que, no caso do transtorno do espectro autista "formal", que possui critérios de diagnóstico e tratamento bem estabelecidos, as telas também são uma preocupação constante.

"Se a criança já possui um transtorno do neurodesenvolvimento e ainda é exposta às telas, o prejuízo é incalculável", diz ela.

"Nesses casos, o indivíduo é privado da interação social, algo que ele mais precisava numa época em que o cérebro está em formação e tem maior neuroplasticidade, ou seja, uma capacidade de fazer novas conexões e novos caminhos para aprender e absorver coisas novas."

A psicóloga explica que crianças com autismo que são intelectualmente estimuladas no início da vida, com pouco ou nenhum consumo de conteúdo por telas, têm uma chance maior de desenvolver sintomas mais leves.

"Essa estimulação precoce pode fazer com que alguns indivíduos tenham manifestações menos graves, quase imperceptíveis aos olhos de quem conhece pouco sobre o autismo", complementa a especialista.

Algumas pesquisas publicadas nos últimos anos investigaram uma possível relação entre o uso de telas e o autismo.

Um estudo feito na Universidade de Yamanashi, no Japão, por exemplo, analisou 84.030 mães e filhos — e concluiu que, entre meninos, a exposição prolongada a conteúdos audiovisuais no primeiro ano de vida "esteve significativamente associada ao diagnóstico de TEA aos três anos de idade".

Já uma revisão sistemática (que compila resultados de vários artigos) feito no Instituto de Neurociências Comportamentais e Psicologia da Califórnia, nos EUA, aponta que "quanto mais longa [e precoce] a exposição às telas, maior o risco da criança desenvolver TEA".

Não custa reforçar, as evidências não revelam que desenhos e vídeos de internet causam o autismo — falamos aqui de um transtorno relacionado a diversas questões genéticas e ambientais.

Mas as evidências apontam que as telas podem ser um fator a mais a contribuir para o agravamento de determinadas manifestações do quadro.

Menino mexendo no computador
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Uso excessivo de telas pode dificultar o desenvolvimento de habilidades sociais nos primeiros anos de vida, sugerem pesquisas

Por que as telas são tão danosas?

Na última década, entidades como a Academia Americana de Pediatria (AAP) e a Organização Mundial da Saúde publicaram manuais e consensos sobre o uso de telas durante a infância.

Em linhas gerais, a orientação é evitar o contato com smartphones, tablets, computadores e televisões nos primeiros 18 meses de vida. A única exceção aqui são as videochamadas, sempre com a supervisão de pais ou responsáveis.

Entre 18 e 24 meses, os pais devem "buscar uma programação de alta qualidade" caso queiram introduzir as telas aos poucos, diz a AAP. A ideia é que a família assista o programa em conjunto e faça brincadeiras relacionadas ao tema.

Dos dois aos cinco anos, as entidades recomendam que o tempo de tela não ultrapasse "uma hora por dia", sempre com conteúdos de alta qualidade.

Já para as crianças mais velhas, a partir de seis anos, a AAP fala em "estabelecer um planejamento familiar de contato com a tecnologia que tenha regras consistentes".

Mas o que faz as telas serem tão ruins à saúde dos pequenos?

"Estudos internacionais sólidos demonstram que as telas diminuem a capacidade de socialização das crianças ao reduzir o tempo que elas interagem com o mundo real", responde Nitsche.

"Há também um aumento no risco de desenvolver problemas visuais, obesidade, de linguagem, entre outros", complementa o neuropediatra.

"O tempo que a criança passa numa tela, por menor que seja, já rouba oportunidades de ela aprender coisas que são muito importantes", resume Gaiato.

O médico Francisco Assumpção, coordenador do Departamento de Psiquiatria Infantil da Associação Brasileira de Psiquiatria, lembra que humanos são seres sociais e dependem da interação para a própria sobrevivência.

"Ou nós nos agrupamos, compartilhamos, fazemos atividades colaborativas e dividimos o trabalho, ou morremos", raciocina ele, que também é professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

"As telas são exatamente o oposto disso."

"E a situação fica ainda pior quando falamos de um indivíduo em crescimento. As crianças precisam aprender a se relacionar com os outros", ensina Assumpção.

"Quando limito esse aprendizado por causa das telas, estou modelando um adulto futuro que não sabe se relacionar, interagir, viver e compartilhar interesses reais, fora do mundo virtual", complementa ele.

A médica Magda Lahorgue Nunes, presidente do Departamento Científico de Neurologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), destaca que a preocupação com as telas não está relacionada apenas à quantidade de horas assistidas, mas também à qualidade do conteúdo.

"Ainda não temos regras muito claras sobre o acesso à internet, especialmente das crianças. Hoje em dia, qualquer um acessa o que quiser, incluindo sites maliciosos que promovem apostas, jogos, pornografia…", alerta ela, que também é professora titular de Neurologia da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Pai e filha vendo TV juntos
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Estabelecer regras sobre consumo de conteúdos e criar atividades a partir desse material são boas maneiras de criar uma relacão mais saudável com as telas

Dá pra melhorar a relação com as telas?

Embora os dispositivos eletrônicos possam representar uma ameaça à saúde das crianças, não dá pra negar que eles fazem parte do dia a dia da maioria das pessoas — e é praticamente impossível pensar a vida hoje sem esse apoio da tecnologia.

Será que dá pra garantir uma relação mais saudável (e menos danosa) com as telas na infância?

"O primeiro passo é dar o exemplo. Os pais precisam se policiar para eles próprios não usarem as telas por um tempo prolongado", começa Nitsche.

Definir regras claras e uma rotina, com horários definidos para fazer todas as atividades (dormir, acordar, fazer as refeições, tomar banho, assistir TV…) também é primordial, avalia o especialista.

"Isso ajuda a criança a ter uma previsibilidade e saber quando vai poder usar as telas", complementa o neuropediatra.

"Ao limitar esse tempo, também é possível aumentar o convívio familiar e trazer outras atividades interessantes, com o envolvimento de pais e cuidadores", acrescenta Nunes.

Já Assumpção sugere que as famílias adotem a política de uma única televisão em casa.

"Com uma TV, todos veem a mesma programação, interagem, comentam e precisam aprender a negociar sobre qual programa será assistido e por quanto tempo", argumenta ele.

Essa negociação, aliás, é uma boa maneira da criança desenvolver o pensamento e a linguagem. As conversas posteriores sobre o vídeo ou o desenho assistido também são bem-vindas, pois ajudam a entender e dar perspectiva às emoções que foram suscitadas por aquele conteúdo.

Aliás, o tamanho e as funcionalidades da tela também têm influência aqui.

"A televisão é melhor, ou menos pior, que tablets e smartphones", exemplifica Gaiato.

"As crianças não podem controlar os dispositivos. Elas não devem voltar o mesmo conteúdo ou pular de um vídeo para outro quando quiserem", complementa a psicóloga.

Nesse contexto, é importante que o conteúdo tenha começo, meio e fim — e o pequeno passe por todas as etapas da história e lide com eventuais frustrações que sentir nesse processo.

Se ele tiver o controle em mãos — ou puder passar o vídeo para frente com os próprios dedos — a tendência é buscar conteúdos com cada vez mais estimulantes.

"É preciso se frustrar com as esperas e os intervalos", diz Gaiato.

Nitsche pondera que as telas "podem ser um recurso digital interessante, que fazem parte da vida e que precisamos aprender a usar".

"Isso acontece com todas as tecnologias que temos no mundo. O carro pode matar pessoas, mas também nos transporta de um ponto a outro."

"O uso das telas passa por uma discussão dos próprios valores daquela família e o que quero que meus filhos entendam e aprendam ao utilizar esse recurso", argumenta ele.

Mas será que só reduzir as telas resolve todos os problemas? Quando a criança deve ser levada para uma avaliação com um especialista?

"Nossa relação com os outros depende de um instrumental linguístico e comportamental. Se a criança consegue fazer isso conforme cresce, não há com o que se preocupar", orienta Assumpção.

"Agora, se ela apresenta dificuldades nos relacionamentos sociais, como problemas para se comunicar ou prefere fazer atividades específicas e autocentradas, vale buscar um especialista", pontua o médico.

Nádia Peres, que passou por todo esse processo de descoberta com o pequeno Breno, torce para que mais pais e responsáveis desenvolvam uma relação saudável dos filhos com desenhos, jogos e vídeos online.

"Espero que todos saibam o mal que as telas podem fazer", conclui ela.

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