Agência BBC

Por que soldado israelense de férias no Brasil virou alvo da Justiça

Foto genérica de soldados israelenses na fronteira com Gaza
Getty Images

A Justiça Federal determinou que a Polícia Federal abrisse investigação contra um reservista israelense que fazia turismo no Brasil, um homem de 21 anos serviu as Forças de Defesa de Israel (IDF) na Faixa de Gaza.

Em nota, o Ministério de Relações Exteriores israelense afirmou ter ajudado o ex-soldado a deixar o Brasil em segurança em um voo comercial.

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A decisão judicial, do final de dezembro de 2024, atendeu ao pedido de advogados brasileiros contratados pela Fundação Hind Rajab (HRF). A organização internacional pró-Palestina, com sede na Bélgica, se define como uma entidade focada em "acabar com a impunidade israelense".

Desde que foi fundada, no ano passado, a HRF tem se dedicado à abertura de ações legais contra soldados israelenses que acusam de violência contra palestinos e crimes de guerra. Mas segundo a própria entidade, essa é a primeira vez que um Estado signitário do tratado que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI) toma ações semelhantes após um caso ser protocolado em seu território.

Em nota, a organização classificou a decisão da Justiça brasileira como "um marco na busca global por justiça e responsabilidade". "Este é um momento histórico", disse Abou Jahjah, presidente da HRF, segundo o comunicado.

Em Israel, porém, o desenrolar do caso gerou controvérsias e muitas críticas.

Em carta ao deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), o ministro de Assuntos da Diáspora e Combate ao Antissemitismo de Israel, Amichai Chikli, classificou a HRF como "apoiadora descarada" do terrorismo.

Segundo o político israelense, investigações conduzidas pela pasta que chefia mostram que os líderes da organização manifestaram apoio em diversas ocasiões ao Hezbollah, ao Hamas e a outros grupos que, nas suas palavras, "buscam a destruição de Israel e o assassinato de israelenses".

Chikli afirmou ainda que, com a decisão, a Justiça brasileira e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) apoiam "indivíduos com ações extremistas", em uma ação que representa uma "vergonha para o governo brasileiro".

O caso também provocou reação do Parlamento israelense. Segundo o jornal local Haaretz, a decisão no Brasil instaurou "pânico" em Israel.

Após as notícias sobre o reservista que passava férias no Brasil, o presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa do Parlamento de Israel, Yuli Edelstein, anunciou que uma reunião seria realizada na Casa nesta segunda-feira (6/1) sobre a proteção dos soldados contra processos no exterior.

Segundo a agência AP, o Ministério das Relações Exteriores de Israel também teria alertado os israelenses contra postagens nas mídias sociais sobre seu serviço militar, para prevenir novas ações judiciais semelhantes à protocolada no Brasil.

As acusações

Na representação criminal apresentada à Justiça brasileira, os advogados que representam a HRF no país acusam o reservista das IDF alvo do caso de prática de crimes de guerra.

Segundo a organização, o ex-soldado teria participado de demolições massivas de residências civis em Gaza, em meio a uma campanha sistemática "de destruição", "de maneira sorridente e debochada" documentado a própria participação no cometimento dos crimes por meio de suas redes sociais.

Os representantes legais da HRF pediam, na representação original, a decretação de prisão provisória, apreensão de passaporte e busca, apreensão e perícia de dispositivos eletrônicos do reservista.

Em resposta, a juíza federal Raquel Soares Charelli determinou a abertura de uma investigação pela PF. A prisão preventiva ou apreensão do passaporte não foram determinadas em um primeiro momento.

A BBC News Brasil procurou a Polícia Federal e a Justiça do Distrito Federal em busca de mais atualizações sobre o processo e a abertura oficial da investigação, mas não obteve resposta.

Palestinos carregam doações em campo de refugiados
Getty Images
Campo de Refugiados de Nuseirat: HRF acusa soldado israelense de ter participado da demolição controlada de um quarteirão residencial na divisa entre o campo e a Cidade de Gaza

Maira Pinheiro, uma das advogadas que representam a HRF no caso no Brasil, lamentou o que classifica como "uma ação da diplomacia israelense" para retirar o reservista das Forças de Defesa de Israel do Brasil antes da instauração de uma investigação formal.

Afirmou, porém, esperar que o processo continue correndo na Justiça brasileira, apesar de o cidadão israelense alvo das acusações não estar mais no país.

Após a saída do reservista do Brasil, a advogada protocolou nova petição em que reitera o pedido de decretação de prisão provisória, bem como requer a consequente inclusão do investigado na lista vermelha da Interpol.

Pinheiro também explicou à BBC News Brasil que, com o término do recesso de final de ano do Poder Judiciário brasileiro nesta segunda, o caso será avaliado pelo juiz mais competente, já que até agora foi avaliado por magistrados que estavam de plantão.

Segundo a advogada, todo o processo tem como base o Estatuto de Roma, do qual o Brasil é signatário. O tratado internacional é considerado um marco do Direito Internacional Penal e estabelece, entre outras coisas, jurisdição sobre crimes graves, como genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

Na representação criminal, a representante da HRF no Brasil argumenta que, diante do compromisso do Brasil com o estatuto, assim como da "inequívoca previsão de competência da República do Brasil para a persecução de crimes de guerra e contra a humanidade em face de todos aqueles que, ainda que os tenham praticado fora dos limites territoriais nacionais, adentram o espaço de jurisdição brasileira", o país teria o dever de impedir e reprimir atos dessa natureza.

No Brasil, o caso começou a tramitar na Bahia, onde o reservista estaria passando férias. No entanto, a juíza plantonista da comarca de Salvador, após parecer do MPF, enviou o caso para Brasília com base no Artigo 88 do Código de Processo Penal.

O artigo estabelece que, para crimes cometidos fora do território brasileiro, a competência é da capital do Estado onde o acusado residiu por último. Se o acusado nunca residiu no Brasil, a competência é do juízo da capital do país.

Monitoramento de redes sociais e geolocalização

A Fundação Hind Rajab tem como um de seus objetivos documentar crimes de guerra contra os palestinos após o início da campanha militar israelense em resposta ao letal ataque de comandos terroristas em Israel em 7 de outubro de 2023.

Seu nome é uma homenagem à menina palestina Hind Rajab, de 6 anos, que morreu em janeiro de 2024 na Cidade de Gaza.

Em novembro, a fundação HRF pediu ao Tribunal Penal Internacional que emitisse mandados de prisão contra aproximadamente mil soldados das IDF listados em um documento protocolados no tribunal.

A organização alegou ter coletado 8 mil peças de evidência da participação dos militares em um bloqueio em Gaza e na destruição de infraestrutura da região, além de ocupação de casas civis, saques e ataques a civis.

Essas evidências são colhidas por meio de monitoramento das redes sociais dos próprios soldados, acompanhamento de notícias e relatos de jornalistas e lideranças em Gaza e cruzamento de dados por meio de geolocalização.

As provas são então usadas pela organização para basear ações legais contra militares que estão temporariamente ou permanentemente no exterior.

Protesto em homenagem aos reféns deixados pelo Hamas em Israel em 7 de outubro
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Protesto por mais ações para a libertação dos reféns deixados pelo Hamas em Israel em 7 de outubro

Segundo a própria HRF, já foram abertos casos semelhantes em diversos países, como Argentina, Chile, França, Holanda, Chipre, Tailândia e outros.

Segundo o portal de notícias israelense Ynet, o Exército já identificou cerca de 30 processos criminais contra seus membros. Pelo menos oito soldados tiveram de deixar os países imediatamente devido a investigações.

Esse mesmo método foi utilizado no caso do reservista que estava de férias no Brasil. Evidências que a organização afirma ter coletado sobre suas ações em Gaza, antes de viajar para o exterior, fazem parte da representação criminal enviada à Justiça brasileira.

As provas apresentadas, segundo a própria HRF, incluem filmagens, dados de geolocalização e fotografias mostrando o suspeito pessoalmente plantando explosivos e participando da destruição de bairros inteiros.

"Esses materiais provam, sem sombra de dúvida, o envolvimento direto do suspeito nesses atos hediondos", disse a organização em nota.

A HRF também afirma ter sido por meio do monitoramento de redes sociais que conseguiu identificar que o reservista passava férias na Bahia.

A advogada Maira Pinheiro afirma ainda que, nesse caso em especial, uma das famílias que supostamente foi vítima das ações do soldado em Gaza deu à equipe jurídica da HRF autorização para entrar na Justiça em seu nome.

A família teria tido sua casa destruída pelas ações do batalhão de qual o israelense fazia parte, segundo a HRF.

'Uso estratégico de artifícios legais'

Segundo a imprensa israelense, o governo local tem alertado seus cidadãos sobre publicações feitas nas redes sociais sobre o serviço militar. "Elementos anti-israelenses podem explorar essas publicações para iniciar processos judiciais infundados contra eles", teria afirmado o governo em nota.

E enquanto um debate sobre o tema foi marcado para acontecer no Parlamento, líder da oposição israelense, Yair Lapid, culpou a liderança de Israel pelo possível processo contra soldados no exterior.

"O fato de um reservista israelense ter sido forçado a fugir do Brasil na calada da noite para evitar a prisão por lutar em Gaza é um enorme fracasso político de um governo irresponsável que simplesmente não sabe como trabalhar", escreveu Lapid em um post no X no domingo.

O TPI expediu, em novembro, mandados de prisão contra o primeiro-ministro de Israel, Bejamin Netanyahu, e o ex-ministro da defesa de Israel, Yoav Gallant. Os juízes da corte encontraram "motivos razoáveis" de que eles têm "responsabilidade criminal" por supostos crimes de guerra e crimes contra a humanidade durante a guerra entre Israel e o Hamas.

O governo, porém, defende sua abordagem e nega as acusações de que é alvo internacionalmente.

Em nota, a Embaixada de Israel no Brasil afirmou que todas as operações militares em Gaza são conduzidas em total conformidade com o direito internacional e que Israel está exercendo seu direito à autodefesa após o massacre brutal cometido pelo Hamas em 7 de outubro.

"Os verdadeiros perpetradores de crimes de guerra são as organizações terroristas, que exploram populações civis como escudos humanos e utilizam hospitais e instalações internacionais como infraestrutura para atos de terrorismo direcionados a cidadãos israelenses."

A representação no Brasil disse também que o país é alvo de "uso estratégico de artifícios legais".

"Por mais de duas décadas, uma campanha global tem como alvo Israel e os soldados das Forças de Defesa de Israel (IDF), utilizando denúncias legais para avançar objetivos políticos", diz o comunicado.

A Embaixada afirma ainda que a organização responsável pela denúncia contra o reservista no Brasil "está explorando de forma cínica os sistemas legais para fomentar uma narrativa anti-Israel tanto globalmente quanto no Brasil, apesar de saber plenamente que as alegações carecem de qualquer fundamento legal".

Controvérsias e acusações

As acusações contra a HRF se baseiam principalmente no histórico controverso do presidente da organização, Dyab Abou Jahjah. O ativista libanês é apontado como apoiador do Hezbollah e do Hamas.

Segundo o jornal israelense Jerusalem Post, ele teria admitido sua afiliação ao grupo libanês em uma entrevista ao americano The New York Times em 2003.

Ele também é acusado de publicar nas redes sociais conteúdos que negam o Holocausto e ter comemorado o massacre realizado pelo Hamas no sul de Israel em outubro de 2023.

Outro nome apontado como parte da liderança da HRF é Karim Hassoun. Segundo organizações pró-Israel, ele também seria um apoiador do Hamas e do Hezbollah.

Países como Estados Unidos, Reino Unido, Japão, Austrália e as nações da União Europeia classificam o Hamas como uma organização terrorista. O Hezbollah também é considerado uma organização terrorista por diversos países, incluindo Israel, Estados árabes do Golfo e nações ocidentais.

A BBC News Brasil procurou a Fundação Hind Rajab diretamente em busca de esclarecimentos sobre as acusações, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

Refugiados palestinos em Gaza
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Mais de 45 mil palestinos foram mortos durante a guerra de 14 meses entre Israel e o Hamas, de acordo com dados do Ministério da Saúde de Gaza, administrado pelo Hamas.

Mas segundo a advogada Maira Pinheiro, as declarações de Dyab Abou Jahjah e outros em relação a Israel e suas ações fazem parte de uma reação ao que classifica como "crimes de guerra" e uma campanha de "invasão" dos territórios palestinos conduzida há décadas por parte do governo israelense.

Questionada sobre a possibilidade de ações semelhantes à protocolada no Brasil serem abertas contra as próprias lideranças da HFR ou de outras organizações palestinas pelos supostos crimes contra Israel de que vêm sendo acusados, a advogada brasileira afirmou que as alegações contra Abou Jahjah e demais figuras do movimento não possuem o mesmo grau de evidência das construídas pela organização pró-Palestina.

Segundo ela, as ações legais protocoladas pela HFR são elaboradas com um rigor que falta a Israel em suas próprias acusações.

Ainda de acordo com Pinheiro, Israel não é signatário do Estatuto de Roma, que promove a responsabilização internacional por crimes como genocídio e crimes de guerra.

Ameaças de morte

Após a divulgação da decisão da Justiça brasileira de pedir a abertura da investigação contra o israelense no Brasil, a advogada Maira Pinheiro relata ter recebido centenas de mensagens agressivas nas redes sociais, contendo inclusive ameaças de morte contra ela e sua filha. Ela também diz que teve informações pessoais divulgadas sem sua autorização.

As mensagens compartilhadas por Pinheiro com a reportagem foram escritas em diversas línguas e contém insultos de caráter misóginos e sexuais.

Apesar das ameaças, a advogada afirmou que irá continuar com o seu trabalho.

Ela encaminhou as informações à Polícia Federal, ao Ministério Público Federal (MPF) e às instâncias competentes da OAB. Também procurou ajuda do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos.

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